quinta-feira, 31 de julho de 2008

Cotas Raciais I

Cotas Raciais
Parte I – Imitando os Estados Unidos

Mércio Gomes
Antropólogo, professor da UFF


O Brasil perdeu confiança em si mesmo! Eis a conclusão que podemos tirar diante da criação de cotas raciais para facilitar a entrada de negros e pardos na Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Os desdobramentos dessa decisão, agora em vias de se tornar nacional e provavelmente ser aplicada nas universidades federais, como política social do novo governo, poderão produzir no Brasil aquilo que nunca tivemos, mas que os Estados Unidos têm com muita tradição: o espírito segregacionista. Resta-nos discutir se o preço da segregação das chamadas “raças” vale a pena para o Brasil, ou se não haveria outra solução que ajudasse a diminuir o fosso de privilégios entre as classes médias tradicionais e o povão brasileiro, mais negro e mais caboclo.

Discutir raça e preconceito no Brasil não é fácil nos dias de hoje. A tendência do brasileiro é evitar o assunto porque a ideologia predominante que diz que o brasileiro não é racista, que vivemos numa “democracia racial”, já não convence mais ninguém. Entretanto, dizer que o Brasil é racista, como se fora os Estados Unidos, é outra falácia. Então, somos o quê? Uma nova atitude de franqueza e auto-condenação é nos considerarmos hipócritas. Somos racistas, fingimos que não somos, mas na hora H discriminamos a quem consideramos de pele escura ou a quem nos parece abaixo de nossa condição social. Não é mole para sua auto-estima um povo se considerar ao mesmo tempo racista e hipócrita!

O sistema de cotas para ingresso na UERJ parece ser uma adaptação do modelo americano, chamado “Ação Afirmativa”, criado no início da década de 1970, com o intuito de compensar as condições negativas das minorias raciais nos Estados Unidos em relação à maioria dos brancos. O princípio que está por trás dessa ação reconhece o caráter discriminatório da cultura americana sobre suas minorias – negros, índios e descendentes de imigrantes mexicanos, que agora são chamados de afro-americanos, americanos nativos e americanos hispânicos – e considera que só pela força da lei é que esta relação de desigualdade poderia ser revertida. Assim, todas as instâncias públicas e privadas foram obrigadas ou estimuladas a dar oportunidades (de educação ou de trabalho) para essas minorias por um sistema de cotas equivalente às suas proporções demográficas. Assim, os afro-americanos, que compõem uns 12% da população geral americana, teriam direito a 12% das oportunidades.

O programa Ação Afirmativa foi implantado em toda a nação. Ao cabo de 30 anos criou em suas minorias raciais uma classe média que soube aproveitar as chances e hoje se perpetua como receptora das cotas. Filhos de afro-americanos que foram compensados no passado hoje recebem a mesma compensação. Os demais, os segregados em guetos e estiolados na pobreza, continuam a ver navios. Por outro lado, a segregação racial continua a existir nos Estados Unidos, agora não mais oficialmente, mas na prática cultural e nas atitudes. Exceto nas cidades mais cosmopolitas, nenhum branco vai a um bar freqüentado por afro-americanos em Nova Orleans, nenhum hispânico ousa entrar num bar de brancos no Texas, nenhum afro-americano distraidamente entra num bar de brancos descendentes de irlandeses em Boston. Não que saía briga de cara, mas não existe ambiente para confraternização. O desconforto inter-racial é permanente, não há papo entre brancos e negros, e quando a competição econômica se acirra, não raro explode em violência.

Os americanos tentaram o sistema de cotas por um motivo principal. Lá eles sabem quem é branco e quem é afro-americano ou hispânico ou americano nativo. Biologicamente, basta ter uma bisavó de alguma minoria racial para que alguém se considere membro do grupo. Mas, na verdade, a segregação racial é muito mais cultural. Uma pessoa é afro-americana porque se segmenta culturalmente como tal; nem precisa ser descendente, basta comportar-se como tal. Um afro-americano é reconhecido de longe pelo jeito de andar, pelo tom de voz, pelo gestual, pelo gosto de vestir, etc. Considerando-se que mais de 95% de cada grupo racial só se casa entre si, o que temos verdadeiramente é um sistema social de castas. O sistema de cotas, a despeito de suas intenções, vem perpetuando essa realidade americana.

E o Brasil? Deveremos seguir esse edificante exemplo americano? Haverá outros modos de trabalhar nosso racismo hipócrita? Uma vez mais, tudo depende da imaginação e da criatividade política. Eis o nosso desafio, o qual, modestamente, tentaremos dar nossa contribuição nos próximos artigos.

Publicado na Tribuna de Petrópolis, em 18 de fevereiro de 2003

quarta-feira, 30 de julho de 2008

A VALE baixa a crista e ressarce os índios Krenak

O relacionamento da Companhia Vale do rio Doce -- VALE -- com povos indígenas que são afetados por seus empreendimentos, especialmente na Serra dos Carajás e no vale do rio Doce, tem sido muito difícil desde que ela foi privatizada.

Quando a Vale recebeu, via decreto presidencial e decreto legislativo, 411.000 hectares de terra onde se situava a maior mina a céu aberto de minérios de ferro, cobre, ouro e outros metais, ela ficou comprometida a cuidar da assistência dos povos indígenas que se encontram ao redor dessa imensa gleba de terras.

E o fez, até se tornar privada, vendida no início do governo Itamar Franco por 3 bilhões de dólares (quando hoje vale mais de 100 bilhões). Aí passou a dizer que ia fazer essa assistência por benemerência, não por questão contratual. Os índios Xikrin e Gaviões, daquela região de Marabá, no sudeste do Pará, passaram a sentir discriminados e tratados com desleixo. Também eles estavam recebendo dinheiro vivo, desbragadamente, sem controle da Funai (porque seus amigos onguistas os tinham convencido a retirar a Funai das negociações) e de qualquer outro órgão. A Vale se aproveitava da péssima imagem que esses índios estavam adquirindo para si exatamente para fazer corpo mole. Quando eu era presidente da Funai, os índios Xikrin invadiram o pátio central da empresa, no coração da mina de ferro e do escoamento do minério. A Vale endureceu as negociações. O juiz federal Haddad obrigou a empresa a cumprir sua obrigação. A Vale entrou com recurso. Enfim, foi um tremendo desgaste para os Xikrin, para a Funai e para a própria empresa. Ela, porém, se acha inabalável.

Acontece que também na região do rio Doce a Vale fez um consórcio com a Cemig, a empresa de energia elétrica de Minas Gerais, e construiu uma Usina Hidrelétrica na beira do rio, a poucos quilômetros a jusante da pequena terra indígena que sobrou para os índios Krenak, antigos senhores dessa região.

A Funai, o Ministério Público e o finado Dom Luciano Mendes de Almeida entraram no meio de campo para ajudar os índios Krenak a receberem uma compensação por isso. Foram vários meses de negociação. Fui a Belo Horizonte três vezes conversar com o grupo que Dom Luciano, com seu prestígio de pastor católico, conseguiu arregimentar, inclusive o governo do estado de Minas Gerais.

O consórcio viu que não podia ser arrogante para sempre e começou a tratar de ajeitar aquilo, ou parte daquilo, que os Krenak pediam. Na verdade, os Krenak pediam uma compensação de 30 milhões de reais e novas terras para si. Conseguiram agora um montante que, no total, incluindo o que já receberam, chega a 12 milhões de reais.

Não sei os detalhes do acordo final. Deve ter sido aquilo que foi possível. Espero que os Krenak possam ter algo que lhes dê condições de se erguer no mundo em que vivem.


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VALE E CEMIG PAGARÃO QUASE R$ 12 MI A ÍNDIOS DE MG

AGENCIA ESTADO

O Ministério Público Federal (MPF) firmou hoje acordo com o Consórcio da Usina Hidrelétrica de Aimorés (UHE-Aimorés) - formado pela Vale e pela Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig) -, encerrando ação civil pública na qual pediu indenização por danos morais coletivos causados ao povo indígena Krenak. O acordo foi firmado na Justiça Federal em Governador Valadares, no leste de Minas, e a indenização total a ser paga é de quase R$ 12 milhões, segundo o MPF.

Na ação, ajuizada em abril de 2005, o MPF e a Fundação Nacional do Índio (Funai) acusaram as empresas e o consórcio - formado pela Vale (51%) e Cemig (49%) - de ignorarem, no contrato de construção da usina, os direitos e interesses dos índios Krenak que habitam a área de influência do empreendimento, na zona rural do município de Esplendor.

No estudo de impacto ambiental, conforme a Procuradoria da República no Estado, as empresas e o consórcio não fizeram qualquer consulta à comunidade indígena - formada por aproximadamente 100 famílias - e muito menos obtiveram o seu consentimento para a construção. "Na verdade, os índios sequer tinham conhecimento do empreendimento que ali seria implantado", afirmou o MPF por meio de nota.

Conforme o MPF, os réus já pagaram até o momento R$ 2,749 milhões a título de valores de apoio mensal, construção de uma ponte, apoio emergencial e cestas básicas. Hoje, se comprometeram a pagar mais R$ 9,182 milhões. Os recursos deverão ser aplicados na implementação de projetos para o desenvolvimento das famílias atingidas e de preservação ambiental das 54 nascentes existentes na terra indígena. Procurada, a Vale não comentou o acordo. A Cemig indicou o consórcio para falar sobre o assunto.

Projetos

O diretor de Relações Institucionais da UHE-Aimorés, Antônio de Pádua Matheus, afirmou que o consórcio pretende aplicar um montante de aproximadamente R$ 4 milhões em um projeto para dar sustentabilidade econômica à aldeia, por meio de um programa de pecuária de leite, incluindo a compra de gado de alta qualidade, equipamentos de formação de pasto e de beneficiamento. Estão previstos ainda o repasse de R$ 1 milhão em espécie e R$ 2 milhões por meio de bolsas-alimentação.

terça-feira, 29 de julho de 2008

Guarani são evacuados de terras públicas no Rio Grande do Sul

A cada dia que passa, pelos próximos anos, questões de disputa de terras vão acontecer no litoral sul e sudeste brasileiro envolvendo grupos de índios Guarani e terras públicas.

É que existem dezenas de pequenas comunidades Guarani vivendo em pequenas glebas de terras as quais elas vêm ocupando na medida em que se trasladam de um lugar para outro. Essas glebas de terras constituem uma espécie de arquipélago de terras de moradia. Acontece que essas pequenas comunidades crescem e as terras ficam insuficientes para elas arrancarem o mínimo de sustento, o qual consiste em alguma agricultura básica e acessibilidade a material florestal para a produção de artesanato. Assim, os conflitos internos na comunidade tendem a aumentar e a saída termina sendo a retirada de uma parte da comunidade para formar outra comunidade, em outro local.

Os Guarani-Mbya, um segmento dos Guarani, constituem a maioria dos Guarani que vivem no litoral sul e sudeste brasileiro. Nesses estados há também, em geral mais para o interior, segmentos de Guarani-Ñandeva, especialmente descendentes dos primeiros grupos Guarani que se deslocaram do Paraguai e Argentina ainda em meados do século XIX. Os Guarani-Mbya começaram a entrar no Brasil por volta da década de 1920 e esse movimento migratório continua até hoje. Até a década de 1970, os pequenos grupos Guarani-Mbya sempre encontravam terras livres pelo litoral sudeste. Assim, movimentaram-se em direção norte, chegaram no estado do Rio de Janeiro por volta de 1968 e subiram até o Espírito Santo por volta de 1970. No Rio de Janeiro povoaram três localidades no litoral sul, Bracui, Paraty-mirim e Araponga. Nas décadas de 1980-90, a Terra Indígena Bracui foi demarcada, inclusive com a ajuda de Darcy Ribeiro e deste antropólogo, durante o segundo governo Brizola. As outras duas terras também foram demarcadas em seguida.

Recentemente, um grupo da comunidade de Paraty-mirim resolveu sair da terra onde vivia e fez um assentamento na Praia de Camboinhas, uma área de preservação ambiental do estado do Rio de Janeiro, ao lado da qual se localiza um condomínio de classe média-alta da cidade de Niterói. Foi um deus-nos-acuda, ainda mais porque parece que o condomínio também não é legal. Até que, alguns dias atrás, um criminoso ateou fogo nas quatro ocas construídas pelos índios e eles ficaram ao relento. A questão vai rolar, com argumentos de todos os lados.

A matéria abaixo já é mais dura. Trata-se das vias de fato. Acontece que um pequeno grupo de Guarani-Mbya fez acampamento ao lado de uma área do estado do Rio Grande do Sul onde existe uma estação de experimentação agropecuária. Alegando perigo de saúde para os próprios índios, que supostamente penetravam na área da estação para colher lenha, uma juíza deu ordem de despejo aos índios e estes foram retirados sumariamente do local onde se encontravam.

A Funai, o Ministério Público e diversas Ongs protestaram veementemente. As autoridades do estado não querem arriscar deixar indígenas assentarem terras públicas com receio de perderem essas terras. Em Porto Alegre, o município já vive ás voltas com um grupo de índios Kaingang que assentou num parque municipal, o Morro dos Ossos, e está difícil encontrar uma saída para esse imbróglio. O mesmo vem acontecendo em São Paulo, Paraná e Santa Catarina. Aliás, os grupos Guarani-Mbya que estavam assentados nas margens da BR-101 estão sendo relocados em glebas de terras compradas de terceiros por causa da duplicação daquele rodovia federal e dos recursos de compensação para compra de terras. A Funai viu que seria dificílimo alegar tradicionalidade de presença indígena naquelas paragens e decidiu que a compra de terras era a solução possível. Isto vai acontecer com mais freqüência daqui por diante.

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Funai e MPF contestam ação de despejo de índios Mbya Guarani

REPÓRTER BRASIL

Decisão da Justiça Estadual do RS autorizou retirada de famílias indígenas de acampamento montado fora de área cercada por órgão estadual. FUNAI não foi notificada porque, para juíza, caso não envolve direito ou terra indígena.

O longo período de espera pelo reconhecimento das terras tradicionais do Arroio Grande, no Rio Grande do Sul, já se prolonga por 35 anos, mas está longe de ser o problema mais grave enfrentado pelos índios Mbya Guarani. Desde o dia 1º de julho, oito famílias da comunidade indígena que foi despejada de um acampamento provisório de beira da Estrada do Conde, em Eldorado do Sul (RS) - por ordem da juíza estadual Luciane Di Domenico - vivem desgarradas e sem abrigo próprio. Metade do grupo foi transferido para a Lomba do Pinheiro, na periferia da capital Porto Alegre, e a outra metade acabou em Coxilha da Cruz, no município de Barra do Ribeiro (RS).

Para além da situação de desesperança e abandono enfrentada pelos indígenas, a própria ação de despejo - em cumprimento à reintegração de posse solicitada pela Fundação Estadual de Pesquisa Agropecuária (Fepagro), entidade ligada à Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Rio Grande do Sul - está sendo alvo de contestações por parte da FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO (FUNAI), do Ministério Público Federal (MPF) e de organizações civis.

Fora do lugar

Salta aos olhos o fato de que o acampamento das famílias ficava fora da área cercada pela Fepagro. Esse pequeno "detalhe" não impediu que, na presença do oficial de Justiça Bruce Medeiros, funcionários da Fepagro e policiais da Brigada Militar retirassem os indígenas do local e desmontassem a estrutura montada pelo grupo desde o início de junho.

Os policiais chegaram a utilizar algemas para imobilizar o cacique Santiago Franco durante a operação, que não foi acompanhada nem por representantes da FUNAI e nem por agentes da Polícia Federal, órgãos públicos normalmente convocados em casos envolvendo indígenas. A ação foi registrada em vídeo por integrantes do Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (NIT-UFRGS).

O presidente da Fepagro, Benami Bacaltchuck, informou em entrevista por telefone à Repórter Brasil que o pedido de reintegração de posse foi protocolado por questões preventivas sanitárias e alegou que os indígenas entravam e saíam, a todo momento, do terreno cercado pela entidade. Trata-se, segundo ele, de uma área de risco, visto que a Fepagro desenvolve pesquisas de patologias animais na unidade. Santiago Franco, líder Mbya Guarani, afirma que os indígenas estavam alojados na beira da estrada e só se deslocavam pelo território para coletar lenha e para chegar até as águas do rio que passa por ali.

"Aquela área era onde Guarani morava", reivindica.

"Eles têm todo o direito de requerer o direito pela terra. Mas não somos nós que temos condições de julgar se a área é tradicional ou não", avalia Benami. "Fizemos o que deveria ser feito. Preferimos evitar riscos [de ordem da saúde dos indígenas] que poderiam ser imputados à fundação no futuro".

Por e-mail, a juíza Luciane Di Domenico informou que decidiu acatar o pedido de reintegração de posse porque a Fepagro, autora da ação, noticiara que os índios teriam "invadido a área ´passando por baixo da cerca´ existente na propriedade". "Não fosse isso, sobreleva realçar que a área em litígio é destinada a pesquisa de sanidade animal, realizada com ´agentes patogênicos para o ser humano, como raiva, brucelose, tuberculose e testes de produtos biológicos e farmacêuticos´. Assim, a permanência dos indígenas no local punha em risco a saúde destes", completa a juíza, em resposta aos questionamentos encaminhados pela Repórter Brasil.

Kaingang ou Guarani?

No despacho que autorizou o despejo, a juíza Luciane faz referência ainda a uma "invasão" de propriedade da Fepagro por parte de índios "Kaingang". Na mesma peça, ela destaca que "o mesmo grupo indígena, poucos dias antes, havia ocupado terras pertencentes ao Estado do Rio Grande do Sul, também localizadas na Estrada do Conde, no Distrito Industrial de Guaíba". Luciane se justifica: "a decisão citou que se tratavam de índios Kaingang porque assim foi noticiado na petição inicial". Nesse ponto, o presidente da Fepagro discorda: "Não fomos nós que confundimos Kaingang com Guarani. Nossa única preocupação foi com a biossegurança".

Na avaliação da juíza, não havia motivo para encaminhar a questão à Justiça Federal - foro que trata de disputas sobre direitos indígenas -, pois o processo diz respeito à "invasão de bem imóvel, que em nada está relacionado com os direitos originários das comunidades indígenas". "Nem mesmo há que se falar em terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, porquanto estas são consideradas aquelas ´habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas e que são imprescindíveis à preservação dos recursos ambientes necessários ao seu bem estar, e as áreas necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições´ (art. 231, §1º, da Magna Carta)", complementa categoricamente.

Para complementar a sua tese, a juíza ressalta que os Mbya Guarani que sofreram despejo "são de uma mesma família e originários do município da Barra do Ribeiro" e que, portanto, a questão não diz respeito a direitos ou terras indígenas. "Pelas mesma razões, não houve notificação à FUNAI".

O presidente da Fepagro esclarece que funcionários da entidade participaram da remoção dos indígenas no ato de reintegração de posse porque a Fepagro recebeu e atendeu a uma solicitação formal feita pela Justiça. Segundo ele, a intervenção da entidade foi necessária porque instituições públicas não dispõem de condições materiais adequadas para ações. "Falta gente. Não se trata de uma questão nossa". Luciane explica que, segunda as normas da Justiça Estadual do Rio Grande do Sul, "cabe às partes [no caso, a Fepagro] fornecerem os meios necessários para cumprimento das medidas judiciais previstas em lei, tais como despejo, reintegração de posse, busca e apreensão, etc.". "Assim, tratava-se de obrigação do Estado-autor fornecer todos os meios necessários à efetivação da medida", adiciona.

Contestações

"Esta medida foi equivocada porque os índios não estavam na área indicada pelo mandado. Eles estavam em terra federal. Essa juíza não tinha competência para atuar no caso", destaca Roberto Liebgott, coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) da região Sul. "Tentei conversar e eles nem conversaram. Pedi para esperar a FUNAI. Eles juntaram tudo que a gente tinha. Misturaram roupa limpa com comida. Agora tem muita coisa estragada. Perdemos quase tudo que tinha valor", diz Santiago, liderança Mbya Guarani.

A Procuradoria da FUNAI no RS protocolou ação no Fórum de Guaíba (RS) para que o imbróglio envolvendo as famílias Mbya Guarani seja tratado na esfera federal e questionou o modo como o despejo se deu, uma vez que a FUNAI sequer foi notificada. A administração da FUNAI em Passo Fundo (RS) salienta que estudos arqueológicos e relatórios (em análise na sede da entidade em Brasília) apontaram a existência de sítios arqueológicos na região entre Guaíba (RS) e Eldorado do Sul (RS), com indícios de que se trata de terra tradicional do povo Guarani. A FUNAI planeja a designação de um grupo de trabalho para a identificação da área, sujeita à ordem de prioridade da comissão de terras da fundação, que estará reunida na capital federal na próxima semana.

Representantes da FUNAI lembram ainda que indígenas Kaingang ocuparam de fato uma outra área na mesma região. Naquela ocasião, as prefeituras de Guaíba e de Eldorado do Sul e o governo estadual pediram imediatamente a reintegração de posse, via Justiça Estadual, e comunicaram devidamente a FUNAI. Uma audiência de conciliação foi marcada e os índios acabaram desistindo da ocupação. Com a saída dos Kaingang, os Guarani formaram outro acampamento, em outro local, mais próximo à Fepagro.

As prefeituras e o estado, pensando que se tratava dos mesmos índios, pediram novamente a reintegração de posse, desta vez sem comunicar a FUNAI. A entidade alega que só foi notificada no momento em que o oficial de Justiça estava para cumprir a reintegração de posse. Por telefone, um representante da FUNAI tentou negociar, sem êxito. Um servidor foi deslocado para o local, mas chegou bem depois da execução do despacho.

O Centro de Trabalho Indigenista (CTI) provocou o Ministério Público Federal e a própria FUNAI para tentar reverter a decisão da juíza Luciane Di Domenico. Segundo informações do CTI, serão quatro ações. Uma contra o Estado do Rio Grande do Sul, pois a Fepagro é ligada à Secretaria de Agricultura; uma contra a juíza, porque deveria ter consultado a FUNAI ou a Policia Federal; uma contra o Oficial de Justiça, e outra contra a Brigada Militar.

Inquéritos

Muito antes da polêmica ação, o Ministério Público Federal (MPF) do Rio Grande do Sul já tinha instaurado um procedimento administrativo acerca da questão das terras tradicionais Guarani. "Quando a execução do mandado de reintegração de posse foi noticiada, o MPF encaminhou um ofício à juíza [Luciane] solicitando para que a questão fosse tratada em âmbito federal", conta o procurador federal Juliano Stella Karam, do Núcleo das Comunidades Indígenas e Minorias Étnicas.

Foram instaurados, então, dois inquéritos: um civil e outro criminal. Como parte do inquérito civil, o MPF solicitou mais uma vez, assim como fez a FUNAI, que o caso fosse destinado à esfera federal. Também é questionada a legitimidade da decisão, uma vez que a área ocupada pelos indígenas não pertencia à Fepagro, e a ausência de notificação da FUNAI. "Nenhuma medida liminar que envolva indígenas pode ser executada sem que a FUNAI seja notificada. Essa determinação está clara no Estatuto do Índio", reitera Juliano. A conclusão do inquérito, que ainda está em curso, acarretará ou em abertura de ação judicial ou em arquivamento. Paralelamente, a investigação criminal investigará se houve abuso de autoridade na retirada dos indígenas.

"Estamos nos sentindo muito mal. Isso não deveria ser feito. Nosso pedido é por Justiça", resume o Mbya Guarani Santiago. Devem ainda ser ajuizadas ações por danos morais coletivos e materiais. Roberto Liebgott declara que os indígenas não abrem mão dos danos materiais porque todo o artesanato, além dos pertences das famílias, foram danificados durante a retirada do grupo. "Essa indenização deve ser revertida em projetos de auto-sustentabilidade. A idéia não é ter o dinheiro, e sim mecanismos para que as famílias desses povos possam investir da sua educação, saúde, roças, artesanatos".

Segundo o coordenador do Cimi na região Sul, a FUNAI prometeu enviar sete grupos de trabalho para dar início ao processo de identificação dessas áreas reivindicadas pelos Guarani. Só no Rio Grande do Sul, existem pelo menos 27 áreas Guarani, mas apenas cinco delas foram demarcadas até hoje pelo governo federal. O dirigente do Cimi destaca que os indígenas dessa etnia são dos que mais têm dificuldades no que se refere à demarcação de suas terras. "É a maior população indígena do país, são mais de 80 mil indígenas Guarani que enfrentam muitas dificuldades, principalmente em função de que suas terras foram colonizadas, entregues para colonizadores no passado, e hoje, a maioria dos grupos desse povo vive em pequenas áreas ou em acampamentos de beira de estrada como ocorre aqui no Rio Grande do Sul".

segunda-feira, 28 de julho de 2008

Índios do Juruena não querem pesquisa no seu rio

Há dois ou três anos a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), ligada ao Ministério de Minas e Energia, vem tentando estudar o potencial hidrelétrico do rio Juruena e seus tributários. Já conseguiu avaliar diversos trechos do rio Juruena, especialmente no seu curso médio e baixo, e considera que o rio tem um grande potencial de receber usinas hidrelétricas. Diversas já estão programadas na região de Sinop e perto do rio Teles Pires.

Porém, no seu trecho superior, tem sido meio difícil. Os índios Cintas-Largas, Enawenê-Nawê, Rikbatsa, Pareci e Nambiquara têm colocado uma certa resistência. Alguns, como os Cintas-Largas e Enawenê-Nawê, têm sido totalmente contrários. Acham que o embarreramento do rio vai provocar a diminuição do peixe e, com isso, o empobrecimento de suas vidas. Outros, como os Rikbatsa, querem compensações e clareza sobre o que vão fazer.

A matéria abaixo traz as falas de alguns dos índios que participaram de uma audiência pública em Juína, no Mato Grosso, por onde passa o rio Juruena. São falas muito interessantes. Inclusive porque, segundo um Cinta-Larga, uma das ameaças para os índios deixarem que a EPE faça suas pesquisas, já com licença da Funai em Brasília, é de que, caso contrário, a Funai poderá ser extinta.

A ameaça da extinção da Funai está sendo espalhada por todos os povos indígenas que têm respeito pelo órgão. Esta é a tática de pavor que a atual gestão da Funai está usando. No Maranhão, os índios Canela e Guajajara estão quietos, diante de sua insatisfação com a política indigenista atual, pelo receio de que o governo force a extinção da Funai.

Porém, o pior de tudo foi a ameaça que o coordenador de assuntos fundiários da Funai, Aluizio Azanha, filho do dono da Ong CTI, Gilberto Azanha, fez aos índios em Juína.. Segundo o jornal 24 Horas, Azanha preveniu os índios de que o Exército estava sendo convocado para entrar nas áreas indígenas, sem tomar conhecimento dos índios. Disse Azanha: "O Exército também tem gente que pode fazer os estudos. Eles não vão chegar com tanque. Vão conversar, mas não vão pedir autorização. A gente não sabe o quanto isso é verdade, mas se tomarem essa decisão, vão desrespeitar vocês”.

Nesse tom e com essas atitudes, fica difícil a Funai manter a sua dignidade perante os índios.


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Índios lamentam falta de saúde e dizem que só pesquisador vai a reservas
24HORAS NEWS

"O governo federal só está querendo crescer. Crescem usinas, crescem lavouras. Mas matam nossa terra, nossos peixes e árvores. Isso é muito complicado. Nós já temos problemas demais. Por isso não vamos deixar que entrem na nossa área para fazer pesquisa. Por que só pesquisador da EPE tem que ir pra lá? Por que saúde não tem?", reclamou Daliyamacê, um dos poucos índios enawene que falam português, na reunião com outros 20 representantes de clãs.

Segundo ele, já há casos entre os enawene de índios que comeram peixes do rio Juruena, nas proximidades de Sapezal - um dos municípios considerados impérios da soja - e adoeceram com diarréia. "A água está ficando contaminada", denuncia. Ele cita outras doenças que têm acometido seu grupo, como malária, pneumonia, leishmaniose, dengue e tuberculose.

O risco de graves impactos à flora, fauna terrestre, aquática e para os índios em função da construção das usinas tem sido alertado pelo pesquisador Francisco Machado (USP), que estuda os rios da região há mais de 20 anos. "Basta que somente uma [usina] seja edificada para que a ictiofauna migradora deixe de existir acima dela", afirma. Alguns índios pressentem essas mudanças e defenderam que as pressões do governo para projetos de hidrovias, usinas e mineração vão culminar com a perda das referências culturais de seu povo, que se alimenta basicamente de peixes. Por isso, o recado de Daliyamacê foi claro.

"Eu já avisei que ninguém vai entrar. Se alguém aparecer lá, o problema vai ser deles", encerrou o representante enawene.

Luiz Cinta-Larga, representante da etnia, garantiu que dentro dos 2,7 milhões de hectares de terras também não vão deixar nenhum pesquisador entrar.

"A gente disse não". "Muitas vezes o governo ameaça. Diz que se o índio não deixar, vai acabar com a FUNAI. Eles têm que ter respeito. Somos discriminados depois que o mundo ficou sabendo da extração de madeira e diamantes nas nossas terras. O governo não está preocupado com o índio. Então por que nós temos que aceitar a proposta do governo?", questionou o representante dos cinta-larga, segundo o qual a etnia Arara também teria se posicionado contra.

Os índios rikbaktsa, entretanto, aceitaram negociar.

"Nós deixamos eles entrarem, mas só quem tiver autorização do cacique e da FUNAI", falou o índio Fernando Dinuru. "Nós também pedimos luz para as aldeias. Queremos abrir estradas de 200 quilômetros dentro das terras indígenas Rikbaktsa, Japuíra e Escondido para melhorar nosso próprio acesso e fiscalizar", explicou Jair Rikbaktsa, representante da etnia, que não viu maiores problemas em permitir o trabalho dos pesquisadores.

Segundo a EPE, todos os equipamentos necessários para a realização dos estudos (marcos topográficos, réguas para medição de nível, postos fluviométricos e sedimentométrico, trado para sondagens geológicas e para coleta de amostras para análise da qualidade de água) provocam interferências mínimas sobre o meio ambiente.

Ainda de acordo com a EPE, esses estudos pretendem analisar várias alternativas de divisão de queda, formadas por conjuntos de aproveitamentos. Depois de compará-las, a empresa afirmou que é selecionada aquela alternativa que apresentar melhor balanço entre os benefícios energéticos, os impactos sócio-ambientais e os custos de implantação, que já devem incluir uma estimativa dos custos de mitigação e compensação ambiental. "Os aproveitamentos da alternativa selecionada na etapa de inventário constituem insumos para as etapas seguintes do planejamento da expansão da oferta de energia", informou.

Mato Grosso do Sul se arma contra Funai; Mato Grosso vai na lábia

Durante toda a semana passada os jornais de Mato Grosso do Sul repercutiram, em um só tom, negativo e alarmante, o assunto da criação de portarias de identificação de novas terras indígenas naquele estado.

A FAMASUL, que é a entidade de produtores rurais do estado, está levantando todos os fazendeiros contra essas portarias e suas possíveis conseqüências. Chega a dizer que o Mato Grosso do Sul vai perder 10 milhões de hectares para os índios Guarani!

O governador do estado, André Pulcinelli, faz discursos inflamados contra essas portarias. Arregimenta deputados e secretários de estado para fazer campanha contra. Vai ao presidente Lula e exige o fim das portarias.

E olha que elas nem deram início aos seus trabalhos. Seus componentes nem chegaram ao Mato Grosso do Sul!

A matéria abaixo sintetiza o espírito dessa resistência que está se formando no Mato Grosso do Sul. Os fazendeiros e seus políticos e advogados querem levar às últimas conseqüências a resistência ao propósito da Funai de criar grupos de trabalho para inspecionar fazendas que teriam sido terras dos índios Guarani em épocas passadas. Vão chegar ao ponto de propor a extinção da Funai, a estadualização da questão indígena, o que for.

Um detalhe curioso é que a FAMASUL contratou o filósofo Denis Rosenfield para assessor a entidade na questão fundiária. O filósofo tem escrito contra o MST e a reforma agrária com muita veemência, mas até agora não tinha se metido com a questão indígena. Quer dizer, até recentemente, pois, outro dia, ele esteve em Roraima, conversou com os índios da SODIURR, que é a organização contrária à homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, e escreveu um artigo no Estado de São Paulo em que põe dúvidas sobre a legitimidade dessa homologação. Porém, não traz argumentos especiais contra e se retrai um pouco na sua visão da questão. Vamos ver o que ele dirá sobre o caso Mato Grosso do Sul.

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Já no estado vizinho, Mato Grosso, o governador Blairo Maggi, com mais poder e moral no governo federal, usa uma estratégia mais inteligente. Está convencendo o governo de que os fazendeiros têm modos de desenvolver o estado, incrementar sua produção agrícola, e, ao mesmo tempo, proteger o meio ambiente, com tecnologias inteligentes.

O ministro Mangabeira Unger passou o fim de semana visitando diversas cidades do Mato Grosso, como Sinop, Sapezal, Juína, Tangará da Serra. Até andou de colheitadeira para ver como os grãos são colhidos e ensacados pela mesma máquina. As matérias estão em diversos jornais do Mato Grosso.

Não se sabe, pelas matérias dos jornais, qual a reação de Mangabeira Unger sobre essa visita, sobre o que viu e sobre o que ouviu dos fazendeiros. Ouviu, inclusive, um grupo de índios Pareci que há uma dezena de anos vem produzindo soja e milho em suas terras através de um consorciamento com fazendeiros locais. Uma espécie de arrendamento em que os índios dão não somente as terras mas também sua mão-de-obra, enquanto os fazendeiros dão os insumos e a tecnologia de produção e venda.

As declarações do ministro Mangabeira têm sido até menos incisivas do que outras feitas anteriormente. É possível que ele esteja em vias de reformular suas idéias iniciais sobre o que pensa da Amazônia e da produção agro-pastoril. De declarações genéricas sobre a necessidade de dar emprego aos seus habitantes e trazer o progresso pela economia intensiva, Mangabeira deve estar vendo a realidade com outros olhos. O buraco é bem mais embaixo. Os custos ambientais para qualquer realidade são imensos. Os custos humanos ainda maiores. Mangabeira deve estar sentindo o quanto há concentração de renda nesses empreendimentos.

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Questão indígena: FAMASUL vai orientar juridicamente produtores rurais

Jornal Dia Dia, por Fabiano Sato

A assessoria jurídica da Federação da Agricultura e Pecuária de MS (FAMASUL) orientará os produtores rurais quanto às vistorias da Fundação Nacional do Índio (Funai), determinadas pelas Portarias da Funai, divulgadas no último dia 14 de julho, no Diário Oficial da União (DOU). Esta foi uma das estratégias deliberadas neste sábado (29) pela comissão de advogados que defendem os produtores com propriedades rurais que tem litígios indígenas.

“A preocupação da entidade está nos efeitos dessas portarias. Nós temos uma suspeita que as análises dessas portarias já estão prontas”, comentou o presidente da Comissão de Assuntos Indígenas e Fundiários da FAMASUL e diretor-secretário da entidade, Dácio Queiroz.

A assessoria jurídica da entidade também aconselha que a entrada desses grupos técnicossó podem ser autorizadas com um mandado judicial. “Também é possível entrar com uma ação na justiça, pedindo que o judiciário faça esta análise e reconheça que a propriedade rural não é terra indígena. O Judiciário faria uma perícia judicial”, comentou o assessor jurídico da FAMASUL, Gervásio Alves Oliveira Junior.

Conforme o presidente da Comissão, o Governo do Estado deve entrar na justiça para derrubar as portarias. A Associação dos Municípios de MS (Assomasul) já reuniu as prefeituras dos municípios que constam nas portarias que deverão também acionar a justiça numa ação coletiva.

Impacto Econômico

O diretor-secretário da entidade já solicitou uma pesquisa do impacto econômico dessas portarias no estado e nessa região. “Não só os produtores rurais assim como a população urbana devem ter informação do que pode acontecer. Já sabemos que essas medidas desvalorizam as propriedades rurais e também afeta! m os mor adores da área urbana. Queremos saber qual é esse impacto para o município em geral. Ele não pode ser inviabilizado economicamente?”, comentou. As vistorias estão agendadas para começar a partir do dia 10 de agosto.

Reuniões pelo Interior

A Comissão de Assuntos Indígenas e Fundiários da FAMASUL em parceria com os Sindicatos Rurais reúne os produtores daquela região. A primeira reunião já está marcada para segunda-feira (28), em Naviraí, no auditório da Associação Comercial e Industrial do município. O objetivo é conscientizar a sociedade sobre os impactos sociais e econômicos do Termo de Ajustamento e Conduta do Ministério Público X Funai.

O consultor da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Denis Lerrer Rosenfield, será o palestrante desses eventos. Rosenfield é formado em Filosofia, pela Universidade Nacional do México, e é “Doutor de Estado” pela Universidade de Paris I Panthéon Sorbornn. É professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e articulista do Estado de SP, O Globo, além de ser também colaborador da Folha de SP.

Na terça-feira, o debate acontece em Dourados.

Participaram da reunião deste sábado os advogados: Guilherme Ramão Salazar, Julio César Rodrigues, Luana Ruiz Silva, Oscar Luiz Oliveira, Gervásio Alves Oliveira Junior, Newley Amarilha e Marilda Rodrigues Santos. Além deles, também participaram da reunião, o diretor secretário, Dácio Queiroz, a diretora tesoureira da FAMASUL, Maria Lizete Brito, e o coordenador de Unidades da entidade, Robson Souto.

Malária cai em 30% na Amazônia

Eis uma notícia a comemorar: diminui em 30% a incidência de malária na Amazônia.

Não é pouca coisa. Há tempos a malária vem provocando um estrago muito grande na população da Amazônia. Desde a década de 1970, com a expansão das frentes agrícolas e pastoris, além dos garimpos descontroladas, a malária ceifou a vida de muita gente e deixou uma quantidade ainda maior com seqüelas permanentes.

Os povos indígenas sofreram muito por causa da malária. Em muitos casos, índios recém-contatados eram acometidos por cepas terríveis de malária e muitos morriam. Em muitas terras indígenas a malária é endêmica e, em muitos casos, pouco se faz para combatê-la. É vista quase como uma fatalidade da natureza.

Mas não é uma fatalidade. Em várias terras indígenas a malária foi debelada quase completamente. É só ter mais atenção e persistência que o vetor é controlado e o plasmódio é debelado.

Assim, parabéns a todos que vêm lutando contra a malária. Aos institutos de pesquisa que estudam o comportamento do mosquito anofilino, à atenção da Funasa (e antes da SUCAM) em diminuir a incidência desse vetor e aos produtores dos novos remédios e terapias.

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Casos de malária diminuem 30% com Amazônia Legal
24HORAS NEWS

Dados do Ministério da Saúde apontam queda significativa nos casos de malária na Amazônia Legal nos cinco primeiros meses deste ano. Os Estados que compõem a Amazônia Legal são Amazonas, Amapá, Pará, Roraima, Rondônia, Acre, Tocantins, Maranhão e Mato Grosso --eles concentram 99,9% das notificações de malária no país.

Entre janeiro e maio de 2008 foram notificados 121.132 casos da doença, contra 185.983 no mesmo período do ano passado --uma redução de 34,8%.

Segundo o ministério, melhorias na rede de diagnóstico, no tratamento e a utilização de medicamentos mais eficazes foram fatores responsáveis pela redução na estatística.

Com a redução de casos, houve impacto também nas internações, que caíram 45,8% no período avaliado, passando de 2.910, em 2007, para 1.576, em 2008, de acordo com o ministério.

sexta-feira, 25 de julho de 2008

A guerra das religiões pela alma indígena

Prosseguindo na esteira do caso JOCUM versus Zuruahá, o jornalista Leonel Rocha produziu uma matéria excepcional sobre a questão da disputa religiosa pela alma indígena. A matéria está aí embaixo e foi publicada ontem no Correiro Braziliense.

Além do interesse pela mão-de-obra indígena, desde a sua chegada e aboletamento nas terras dos brasis, os portugueses queriam converter os índios ao cristianismo. Fazia parte de sua missão civilizatória, paralelo à missão colonizadora. Portanto, o que estamos presenciando hoje, a disputa entre as missões católicas e evangélicas, em geral unidas contra o Estado, é uma réplica dos 500 anos de colonização. Naqueles anos a disputa era entre jesuítas e as demais missões cristãs, os carmelitas, franciscanos, mercedários e, mais tarde, os capuchinhos, todos mais ou menos unidos contra a Metrópole, que, através do Padroado, financia a todas.

Ao final, o que sobram são os índios desalmados de suas antigas crenças e incluídos religiosamente no mundo dominador.

A matéria de Leonel Rocha traz frases muito cortantes contra as religiões impostas aos povos indígenas proferidas por Gersem Baniwa, um estudante indígena de doutoramento em antropologia na Unb, e entrevista alguns antropólogos, inclusive alguns que estão diretamente envolvidos com o CIMI e com as missões religiosas.

Da minha parte, considero que a política indigenista brasileira criada pelo Marechal Rondon é laica e deveria continuar laica, respeitando as tradições e crenças indígenas.


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A guerra pelas almas

Correio Braziliense, por Leonel Rocha

Projeto de lei criado por evangélicos busca criminalizar o infanticídio nas tribos. Para especialistas, proposta é reflexo da atuação de entidades que tentam converter os índios ao cristianismo sem respeitar sua cultura

A disputa entre católicos e os vários segmentos evangélicos chegou à taba. O Projeto de Lei nº 1057, que considera criminosa a pessoa que praticar ou conhecer e não denunciar o infanticídio indígena, é a parte visível da guerra pelas almas dos índios brasileiros. Prevista para ser votada no segundo semestre pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara dos Deputados, a proposta divide religiosos, indigenistas e antropólogos sobre a prática de alguns povos que sacrificam crianças portadoras de necessidades especiais e comprometimento cerebral, entre outros casos. A disputa para cristianizar os índios coloca, de um lado, missionários católicos e, do outro, alguns segmentos evangélicos que patrocinam o projeto.

Apresentado no ano passado pelo deputado evangélico Henrique Afonso (PT-AC), o PL não tem data para ser votado no plenário da Câmara. Há uma semana, uma manifestação no Congresso levou grupos de militantes evangélicos de várias denominações a reivindicar a aprovação da lei. O parecer da deputada Janete Pietá (PT-SP) descarta a criminalização do infanticídio indígena. Pietá optou por um texto, ainda a ser votado na CDHM, prevendo a criação de um conselho tutelar indígena e a adoção de uma campanha educativa para evitar o infanticídio, ainda mantido por povos como os Suruwará. Eles vivem entre os rios Purus e Juruá, no Amazonas, e consideram a morte de crianças um instrumento de controle de natalidade. A prática foi tema do filme Hakani, produzido pelo escritório brasileiro da organização evangélica Jovens com um ideal (Jocum), como parte de uma campanha internacional pelo fim do infanticídio nas tribos.

Batalha

A disputa pelas almas dos Suruwará motivou uma batalha judicial entre católicos e evangélicos. Em contato com os índios desde 1980, há cinco anos o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), da Igreja Católica, entrou com uma representação no Ministério Público Federal contra a atuação da Jocum na aldeia. A representação foi motivada por um "diário de campo" deixado pelos evangélicos na aldeia e encontrado por missionários do Cimi. Segundo a entidade, o texto continha uma doutrina que considera as religiões indígenas uma manifestação demoníaca, o mesmo princípio usado historicamente pela Igreja Católica desde o Descobrimento e abandonado na década de 1960. A Procuradoria da República em Manaus conseguiu que a Justiça determinasse a saída dos missionários da Jocum da aldeia. Mas a organização resiste em deixar a área, alegando que está ali para combater o sacrifício de crianças doentes.

"Qualquer religião é perversa com os indígenas. Os missionários tentam colonizar os índios impondo o pecado e o medo do inferno", critica Gersem Baniwa, doutor em antropologia e indígena que viveu até os 10 anos na aldeia Yakirana, no Amazonas. "As religiões ocidentais surgiram para dominar cultural e espiritualmente o mundo e também os índios. É o imperialismo religioso que acaba com a convivência coletivista das aldeias", lamenta. Entre as conseqüências da atuação religiosa nas aldeias está a mudança de hábitos e rotinas dos indígenas. Uma delas é a guarda de um dia de descanso depois de uma semana de trabalho, como está na Bíblia. Poucos índios adotam o calendário ocidental, mas alguns grupos estão sendo convencidos a adiar pescarias ou caças por ser sábado ou domingo.

Arsenal

Para transformar índios em cristãos, católicos e evangélicos não medem esforços. Montaram um arsenal para a tarefa. Fundado na década de 1970, o Cimi conta com cerca de 350 missionários padres e leigos, possui rádio, revista e jornal. Os evangélicos fundaram a Associação de Missões Transculturais Brasileiras (AMTB), que reúne 600 missionários e abriga diferentes entidades. A organização da AMTB, que tem 25 agências entre os índios brasileiros, chega ao detalhe de fazer um levantamento sobre quais tribos já foram evangelizadas e quantas ainda estão isoladas. A ONG detalha em seu site quais etnias possuem a Bíblia completa no próprio idioma e define como objetivo levar os princípios evangélicos a 120 outros povos. Na internet, a AMTB chega a oferecer a adoção de vários povos que, segundo eles, não conhecem a palavra de Deus.

Nessa guerra, evangélicos e católicos apresentam estratégias diferentes. O antropólogo e pastor presbiteriano Ronaldo Libório, um dos coordenadores da AMTB, nega que os missionários da associação obriguem os índios a adotarem o cristianismo como religião, abandonando suas culturas. Segundo ele, os valores do evangelho não são incompatíveis com nenhuma sociedade humana, muito menos os índios. Revela que, no processo de conversão dos indígenas, há batismo, mas ressalva que a principal atividade dos missionários é aliviar o sofrimento dos povos das florestas com a implantação de projetos sociais nas áreas de saúde e educação.

Já os missionários do Cimi não consideram o infanticídio uma prática selvagem dos índios e defendem que essa cultura tem lógica nas aldeias com pouco contato com a cultura ocidental. "Não podemos tratar os índios que têm essa prática como bandidos", argumenta Saulo Feitosa, secretário adjunto do Cimi. A entidade inaugurou há alguns anos um novo método de evangelização. Não batiza as crianças indígenas e aceita a teologia e os rituais dos diversos povos. Os católicos adotam o que chamam de "missão calada" e esperam que só com o exemplo possam conquistar almas dentro das florestas.

O proselitismo cristão nas aldeias assusta estudiosos e indigenistas. O antropólogo Rubem Thomaz de Almeida defende que o governo estabeleça regras para a entrada e permanência dos missionários nas aldeias. "Os missionários católicos adotam a educação clássica como método de dominação política. Os evangélicos impõem proibições que impedem o diálogo cultural com os índios", analisa. O ex-presidente da FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO (FUNAI), Mércio Pereira Gomes, defende a saída dos missionários da convivência direta com os indígenas. Ele entende que, antes da Bíblia, os índios deveriam ter uma educação formal laica para evitar práticas como o infanticídio, por exemplo. "O que esses missionários cristãos querem mesmo é salvar as próprias almas", critica.

Por um novo modelo

O movimento evangélico indígena vai ganhar uma nova força em setembro e pode mudar de cara. O Conselho de Pastores e Líderes Evangélicos Indígenas (Conplei), entidade criada em 1990 e dirigida por representantes de vários povos, vai realizar, em setembro, no Amazonas, o sexto congresso da instituição para definir o modelo de cristianismo evangélico que será pregado nas aldeias. A Bíblia será difundida sem a participação de missionários "ocidentais". "Defendemos o intercâmbio cultural e religioso, com respeito às nossas tradições e uma evangelização contextualizada à nossa vida", explica Eli Ticuna, militante evangélico, teólogo e estudante de mestrado em administração.

O conselho funciona como uma supra-organização nacional de índios evangélicos, espécie de concorrente direto do Conselho Indigenista Missionário(CIMI), da Igreja Católica. Um dos principais objetivos é evitar a forma de atuação de pastores evangélicos que não pertencem às aldeias. "Queremos uma igreja com a cara do índio, que respeite a nossa diversidade cultural e não nos imponha conceitos", define Eli. O diálogo proposto pelo Conplei é mais fácil com as denominações evangélicas do que com os católicos.

quinta-feira, 24 de julho de 2008

JOCUM é desmascarada por Carta Capital

Uma bomba jornalística cai sobre a cabeça da JOCUM, a Ong evangélica de origem norte-americana que fez e publicou no Youtube um filme indecente e criminoso sobre os índios Zuruahá, inclusive com cenas de crianças ameaçadas de sofrerem infanticídio.

A matéria foi feita pelo jornalista Felipe Milanez, que tem se destacado como um dos mais ativos e perspicazes jornalistas a cobrir a questão indígena brasileira. Foi baseada em entrevistas com muitas pessoas e com o vasto material copilado por Antenor Vaz, um experiente e dedicado indigenista da Fundação Nacional do Índio.

Com experiência em campo, pelo tempo que passou na Funai, entre 2005 e 2007, Milanez escreve com a desenvoltura de quem conhece aldeias indígenas e sabe das disputas das facções religiosas pelas almas dos índios.

O artigo, intitulado Contágio nas matas, consultou antropólogos, o presidente em exercício da Funai, a sub-procuradora da 6ª Câmara do Ministério Público, Debora Duprat, e os próprios missionários, tanto evangélicos quanto católicos. O que dá para perceber claramente é uma disputa ferrenha e obnubilada pelo povo indígena Zuruahá, já que a Funai tem poucas condições objetivas, inclusive de pessoal, para dedicar uma atenção especial aos Zuruahá.

A matéria serve de alerta à Funai. Sem o estado brasileiro em ação, os Zuruahá ficarão nas mãos das Ongs religiosas, que farão desse povo indígena o que bem entenderem, até o momento em que se cansarem ou não tiverem mais interesse.

Na verdade, por tudo que sabemos sobre a questão da missionização dos povos indígenas, de Anchieta e Nóbrega aos dias atuais, é que a missionização é o processo mais célere de transformar os índios em não índios, de os assimilar e os incluir no processo civilizatório, já desalmados e com outras características sociais e culturais. De destemidos para humildes.

A maioria do povo brasileiro formado nos séculos XVI, XVII e XVIII veio da passagem de aldeias indígenas para missões religiosas, reduções, vilas de pescadores, vilas agregadas às fazendas e engenhos, e, enfim, para a situação de agregados sem terra nas terras dos fazendeiros.

Hoje em dia a mão de obra indígena (exceto em casos raros, como os Guarani nas usinas de cana-de-açúcar, no Mato Grosso do Sul) não é mais necessária para o capitalismo brasileiro, assim, o que pretendem as missões é inculcar nos índios o sentimento de que só pela religião, seja ela conservadora ou libertária, é que se salvarão do processo social que os envolve. Salvar-se-iam de um processo social para entrar em outro, que já não mais existe.

No fundo, porém, os atuais missionários sabem que não convencem nem convertem ninguém de espírito livre, apenas aqueles que já estão inseridos no processo civilizatório brasileiro ou mundial, que é condição sine qua non. O que eles querem é simplesmente salvar suas almas, às custas das almas dos índios.

A matéria de Felipe Milanez merece uma leitura fina e cuidadosa. Que tenha boa repercussão por aí.

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Contágio nas matas

Amazônia - Há cinco anos, o Brasil tenta tirar uma ONG dos EUA de áreas indígenas

CARTA CAPITAL, edição 505, por Felipe Milanez

Numa área pouco povoada entre os rios Purus e Juruá, dois grandes afluentes da margem direita do Amazonas, próximo à cidade de Lábrea, a aldeia suruwahá vive um drama que ameaça levá-la à extinção. Localizados em meio a um mosaico de 24 terra indígenas, próximo ao gasoduto Urucu-Porto Velho, os suruwahá têm convivido com uma onda de suicídios atribuída ao contato com os brancos. Diante da ausência do Estado, eles dependem exclusivamente de uma missão evangélica norte-americana, a Jocum (Jovens com uma Missão), que há anos mantém contato com os índios, levando a "palavra do Senhor".

Há mais de cinco anos o Ministério Público e a Funai tentam retirar os missionários, a quem atribuem uma série de ilegalidades. Documento interno da Funai, ao qual Carta Capital teve acesso, intitulado Missão: o veneno lento e letal dos suruwahá, reúne graves denúncias contra a Jocum. Assinado pelo indigenista Antenor Vaz, da Coordenação Geral de Índios Isolados da Funai, acusa a missão de proselitismo religioso, evangelização e desestruturação da comunidade suruwahá, hoje às voltas com uma onda de suicídios.

Entre as acusações, a de escravizar indígenas, extração ilegal de sangue dos índios, contrabando de sementes, construção de pistas de pouso clandestinas, uso de radioamador pirata, venda ilegal de madeira, remoção de indígenas de seu território sem autorização da Funai, adoção suspeita de crianças, realização de expedições veladas em busca de aborígenes isolados e o uso indevido de imagens dos suruwahá. Também é acusada de incitar os índios contra os representantes do Estado brasileiro, no caso a Funai e Funasa. Os funcionários das duas fundações têm sido ameaçados de morte.

"É uma atuação muito complicada. Eles fazem o que querem sem prestar contas a ninguém", afirma o presidente em exercício da Funai, Aloysio Guapindaia. Os missionários são os únicos a falar a língua dos suruwahá. E resistem a sair com o argumento de que os índios desejam sua companhia.

A Jocum, junto com outras entidades evangélicas, como a Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), e a Sociedade Internacional de Lingüística atuam intensamente na maioria dessas aldeias. Contam com a logística necessária para fazer a mediação cultural com os índios e controlar o fluxo de pessoas. E também com o respeito dos nativos, complicando o trabalho dos funcionários da Funai, que estão longe de deter o controle do território dos suruwahá. Na verdade, até bem pouco tempo atrás, a Funai contava com apenas um funcionário para atender toda a região. Recentemente, contratou-se outro.

Em maio de 2003, o então procurador da República no Amazonas Sérgio Lauria Ferreira determinou a expulsão dos missionários da Jocum e do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ligado à Igreja Católica. Até hoje a Jocum se nega a sair e impõe condições. A ONG evangélica também está na mira da Secretaria Nacional de Justiça, do Ministério da Justiça. A Agência Brasileira de Inteligência (Abin) considera que a Jocum "ameaça identidade étnica e interfere na 'cosmodivisão' dos índios, por introduzir rituais religiosos e entidades místicas estranhas à cultura suruwahá.

Presidente da Jocum, Bráulia Ribeiro nega as acusações, ao justificar por que se recusa a sair da terra indígena. "Somos parte da família dos índios. Nosso papel é promover o bem-estar. Não pregamos religião, mas os índios têm o direito de ouvir e escolher se querem se evangelizar. A pregação é pelo relacionamento, no convívio", afirma a missionária. A Jocum consegue manter uma equipe na aldeia, transportada em hidroaviões e aeronaves. Estas utilizam pistas de pouso construídas em associação com outras missões, em aldeias próximas às do suruwahá, como a dos deni.

Criada pelo pastor fundamentalista norte-americano Loren Cunningham, em 1960, a Jocum chegou ao Brasil em 1975. Entrou em contato com os suruwahá em 1984, com a justificativa de proporcionar assistência médica aos indígenas. A avaliação da Funai é que a assistência é ineficiente e funciona apenas como álibi para a evangelização.

Desde o primeiro contato da Funai com os suruwahá, em 2000, ficou claro que alguma coisa estava errada na aldeia, conta Izac Albuquerque, o primeiro funcionário a alcançar a área. "Assim que cheguei, um grupo me cercou. Apontavam flechas envenenadas, me ameaçavam. Eles falavam que não gostavam da Funai, que a Funai matava e fazia tudo de ruim". Mais tarde se deu conta de que a recepção hostil tinha sido inflada pelos missionários.

Para o Ministério Público Federal, as duas missões, evangélica e católica, são irregulares e devem retirar-se. Rivais, as duas entidades trocam acusações. O Cimi deu início às denúncias contra a atuação da Jocum, há dez anos, acusando-a de espalhar a gripe na região. Para se aproximar dos indígenas, a Jocum contara com um casal de missionários Edson e Márcia Suzuki, que aprenderam a língua. Em seguida, começaram a traduzir para o suruwahá conceitos cristãos e a intensificar o processo de evangelização. Foi nesse ponto que o Cimi denunciou a ação da Jocum.

O que as missões não esperavam enfrentar é um drama ainda maior, no caso dos suruwahá em relação a outros povos, ainda não compreendido: o altíssimo índice de suicídio. Os suruwahá morrem voluntariamente. A taxa de suicídio de 8% ao ano é impressionante. No contrafluxo da tendência nacional, a população suruwahá está caindo nos últimos anos. Hoje são 137, em 2004 eram 145.

Para o antropólogo João Dal Poz, que pesquisou o tema do suicídio entre os suruwahá, esse distúrbio tem origem em uma dinâmica de transformação sociológica, do modo de vida desse povo após a chegada dos brancos na região. Eles cultivavam uma relação belicosa e complexa com seus vizinhos, nutrida por magias e feitiçarias. "Sempre houve suicídio, mas nunca numa taxa tão alta. Parece-me que são reflexos da guerra religiosa entre católicos e evangélicos, instaurada inclusive entre as lideranças locais. Eles tentam se matar e muitas vezes se matam por qualquer bobagem", afirma Dal Poz.

A análise da pirâmide demográfica atualmente é assustadora: não há adultos homens entre 45 e 60 anos. Para o Cimi, a Jocum e o descaso do governo federal são os maiores responsáveis. "É provável que esse aumento dos suicídios tenha a ver com as constantes saídas dos índios para as cidades, promovidas por alguns missionários evangélicos com o apoio da Funai e da Funasa", diz Josefa Alves, do Cimi. Ela defende o contato dos suruwahá com outro indígenas, o que os ajudaria a superar o etnotrauma, como define, decorrente do contato com seringueiros desde os anos 1980.

Para a Jocum, a saída passa necessariamente pela "salvação religiosa". Os índios estão dominados por demônios e precisam "encontrar Jesus", como diz Bráulia Ribeiro. Por esse motivo, missionários da Jocum começaram a fazer rituais de exorcismo dentro da aldeia. O Cimi sustenta que a missão evangélica trouxe da Nova Zelândia dez xamãs da etnia maori, cujos rituais desagradaram aos pajés locais, que se sentiram desprestigiados.

Bráulia revida para afirmar que quando os índios são retirados das aldeias sempre há o consentimento da Funai e da Funasa. Os dois órgão negam. Mas a questão se tornou ainda mais emblemática em 2005, quando os missionários levaram para tratamento em São Paulo as pequenas Iganani e Sumawani, que, segundo eles, conforme costumes locais, seriam assassinadas por apresentarem deficiências físicas. Levaram também os pais da última, Kusiama e Naru. Diante da repercussão, dirigentes da Jocum tiveram de depor em audiência pública na Câmara dos Deputados, em Brasília, para explicar a retirada sem autorização das crianças da aldeia. Conseguiram angaria a simpatia de alguns parlamentares.

Em Rondônia, onde a Jocum também é bastante ativa e mantém sua sede, a Associação do Povo Uru-eu-uau-uau, da região do rio Jupaú, denunciou que os missionários estariam comercializando sementes de mogno para o exterior ilegalmente. Para a Jocum, tratava-se de uma operação ligada a um convênio que seria firmado com a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária). A Embrapa não confirma a informação.

" Nossa expectativa é que se avaliem as práticas do Cimi e a da Jocum e se identifiquem quem faz agressões culturais e comete ilegalidades. Não se trata de duas missão religiosas disputando espaço", afirma Francisco Loebens, coordenador do Cimi Norte, com atuação na região amazônica.

Alguns anos atrás, três jovens missionários da Jocum - Júlio Nova, Nilson Carvalheiro e Nivaldo Carvalho - foram apanhados no meio de uma expedição ilegal. Tentavam estabelecer contato com o povo isolado hi-merimã, próximo aos suruwahá, contrariando a política da Funai de evitar o contato com os povos isolados.

A dinâmica da evangelização surpreende, ao se referir a temas inusitados. Há relato de um jovem suruwahá que ora para Jesus pedindo boas caçadas. "Um rapaz novo fez isso e matou, num só dia, as duas primeiras antas de sua vida."

No documento da Funai, há relatos variados de interferência cultural. Vizinhos dos suruwahá e também falantes da língua arawa, os banawa tinham o costume de abandonar o lugar onde moravam sempre que uma pessoa morresse. Após a morte, enterravam todos os haveres do morto, para que seu espírito não amedrontasse os vivos. Só a morte de uma velha banawa acabaria com a maldição. Certa vez, uma missionária da Jocum, conhecida por Fátima, depois do enterro, convenceu os indígenas de que se todos ficassem rezando a Deus o espírito da falecida não voltaria. Segundo o relato da Funai, os índios ficarm rezando a noite toda. Para a missionária, foi a oportunidade de fazê-los sentir "o poder de Deus e a sua superioridade".

Diante da diversidade de povos indígenas próximos e da presença rarefeita da Funai, o antropólogo Dal Poz sugere analisar em termos genéricos a presença das missões na região. "A atuação dessas missões vincula-se aos objetivos ideológicos dos fundamentalismo evangélico norte-americano, em seus esforços de evangelizar e converter os índios." Débora Duprat, subprocuradora-geral da República, concorda que a gravidade da questão se deve à ausência do Estado na Amazônia. "Várias comunidades são assediadas pelas missões. E neste caso dos suruwahá os missionários têm efetivamente o domínio, inclusive espiritual do grupo", afirma. A procuradora está preocupada com a repercussão que o filme lançado recentemente pela Jocum poderá causar. Hakani: Incinerado Vivo - A história de um sobrevivente chocou antropólogos e indigenistas no Brasil pelo forma como os índios são retratados.

Dirigido por David Cunningham - filho do fundador da Jocum - , o filme conta a história da menina Hakani, sobrevivente a uma tentativa de infanticídio. Seus pais e alguns parentes teriam se suicidado por causa disso. Hakani foi entregue aos missionários e com eles vive até hoje. Trata-se de um libelo contra o que os antropólogos e a própria Funai vêem como um elemento da cultura suruwahá.

Para a procuradora, cabe uma ação de danos morais pela forma como os povos indígenas são tratados. "Denigre a imagem dos índios, acirra os preconceitos e usa-os para uma batalha da Jocum, que é a aprovação de uma lei despropositada que criminaliza a prática de infanticídio."

Em seu blog, o ex-presidente da Funai Mércio Gomes considerou o filme "criminoso". E pediu que se fizesse uma denúncia para a "Polícia Federal, o Ministério da Justiça, a Secretaria de Direitos Humanos, a Funai, o Supremo Tribunal Federal e todas as instâncias judiciais, jurídicas e éticas do Brasil". A Funai diz que investiga o caso e estuda medidas judiciais contra a Jocum.

A expulsão da missão evangélica da terra indígena é dada como certa, mas já se passaram cinco anos desde que o Ministério Público Federal se pronunciou nesse sentido. O MP alega que o grupo indígena vive uma situação de vulnerabilidade, pelo contato recente. " A Jocum manipula os índios, coloca-se como amiga. Mas é um discurso para fora, na verdade os missionários desqualificam os índios, tratam-nos como selvagens, são preconceituosos", afirma Rodrigo Lines, que cobra da Funai a retirada dos missionários e defende a adoção de um programa de proteção.

O temor geral é que ocorram novos suicídios caso a missão saia. "Se for preciso, vamos buscar uma medida mais enérgica entrar com uma ação, cobrando multa e medidas coercitivas. Isso em última instância, para não azedar e dificultar ainda mais a relação de confiança que a Funai e a Funasa devem estabelecer com os indígenas", diz Lines.

Com a saída da Jocum, a Funai retomaria o controle da área para aplicar o modelo de atuação implantado junto ao povo zoe, visto como exemplar pela fundação. Os zoe viveram momentos parecidos, mas sob o domínio de outra missão, a MNTB, já expulsa. Agora, a Funai percebe uma situação mais tranqüila, com recuperação demográfica e bem-estar social, sob a supervisão do indigenista João Lobato, nos mesmos moldes das operações realizadas pelos irmãos Villas-Boas.

De acordo com o presidente em exercício da Funai, Aloysio Guapindaia, enquanto a Funai for fraca, não haverá muito a ser feito, e o Brasil terá de conviver com esse tipo de ameaça à soberania política. " A sociedade tem de ter como objetivo a reestruturação do órgão indigenista", afirma.

Hoje, caso a Petrobrás pretenda discutir os impactos do gasoduto Urucu-Porto Velho com os índios suruwahá, terá como interlocutora uma Funai "surda", incapaz de consultar os índios por sua conta, ou se submeter à tradução dos missionários evangélicos de uma organização norte-americana. Em terras da União, em pleno território amazônico, cuja soberania nos últimos tempos tem inflamado tantos ânimos.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Guarani versus Eike Batista -- caso para o STF

Diversos jornais nacionais repercutiram hoje a notícia de que o TRF da 3ª Região (São Paulo e sul do país) remeteu diretamente para o STF o caso do chamado "Porto Brasil" que o mega-empresário Eike Batista pretende fazer na cidade de Peruíbe, e onde tem problemas com a possível demarcação de uma terra indígena para os índios Guarani.

Já repercutimos aqui notícia anterior sobre esse tema. No ano passado os índios Guarani da região foram abordados por uma equipe de Eike Batista, junto com alguns representantes da Funai. O assunto ficou indefinido. Depois chamaram um pretenso indigenista conhecido pelo apelido de "Cabelo de Milho". Parece que esse tal entornou o caldo ainda mais.

O Ministério Público entrou com uma ação contra a pretensão do Porto Brasil, em favor dos índios Guarani. Eis agora que o desembardador Fábio Preito de Souza se considera incapacitado para julgar o mérito da questão e a envia para o STF.

Mais uma ação sobre a questão fundiária indígena para ser resolvida pelo STF. Há dois anos e meio avisei que tudo iria cair no colo do STF. Há muitas ambiguidades e indefinições em conceitos e noções presentes na Constituição brasileira de 1988, muito mais do que no Estatuto do Índio. Os ministros do STF têm agora a faca e o queijo na mão. Poderão decidir o futuro da questão indígena, no que concerne aspectos de interpretação do que é terra indígena.

Tenho para mim que os ministros do STF terão que se debruçar com denodo e inteligência sobre o quê se pode entender por tradicionalidade de terras indígenas. Eis o calcanhar de aquiles da questão indígena brasileira atual. É possível que, no bojo da decisão sobre a homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol venha algo mais poderoso e definitivo. Caso contrário, as indefinições vão continuar a provocar celeuma e insatisfações na relação interétnica brasileira.

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Decisão sobre projeto de Eike vai para o Supremo
Desembargador impede Justiça de Santos de julgar processos. LLX nega qualquer ilegalidade no contrato


O GLOBO, Lino Rodrigues

SÃO PAULO. O desembargador federal Fábio Prieto de Souza, da 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3aRegião, suspendeu ontem as ações movidas pelo Ministério Público Federal (MPF) e pela FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO (FUNAI) contra o licenciamento ambiental do complexo industrial-portuário Porto Brasil, no litoral paulista. O projeto é da LLX, braço no setor de portos do grupo EBX, do empresário Eike Batista. Em caráter liminar, o desembargador reconheceu a "incompetência absoluta" da Justiça Federal de Santos para julgar o caso, remetendo o processo para o Supremo Tribunal Federal (STF).

Segundo ele, a existência de conflito federativo entre a União e a FUNAI (autarquia federal) e o estado de São Paulo indica que só o STF poderá decidir a questão.

Souza diz ainda que a decisão (de remeter ao STF) está baseada em precedentes existentes como os casos da reserva Raposa Serra do Sol e da transposição do Rio São Francisco.

A empresa de Eike Batista tem planos de construir um megaprojeto em uma área de 19,5 milhões de metros quadrados dentro da chamada terra indígena de Piaçagüera, em Peruíbe, litoral Sul paulista. O projeto inclui um complexo portuário com 11 berços para atracação, uma ilha artificial e um parque industrial. Os investimentos previstos superam os US$ 2 bilhões. O projeto aguarda autorização da Secretaria do Meio Ambiente de São Paulo.

Na ação para embargar o projeto, os procuradores da República Luiz Antônio Palácio Filho e Luís Eduardo Marrocos de Araújo pediam a suspensão imediata da concessão de licença ambiental e acusavam a LLX de tentar erguer o empreendimento em uma área indígena, reconhecida pela FUNAI desde 2002. Os procuradores também apontaram supostos desvios cometidos pela empresa de Eike Batista para obter a propriedade definitiva da área, habitada por índios da etnia guarani. Segundo os procuradores, a LLX teria oferecido dinheiro e vantagens aos índios para que eles desistissem da disputa pela terra.

Para os procuradores do MPF, o que está por trás do licenciamento não é apenas um porto, mas um complexo de indústrias extremamente poluidoras, já denominado como Complexo Industrial Taniguá". De acordo com os autos do processo (com três volumes e 544 páginas), a empresa teria cometido "violações", "ameaças" e "investidas ilícitas" para obter a propriedade da área.

- O Porto Brasil é uma nova Cubatão - afirmam os procuradores, referindo-se a cidade vizinha a Santos que já foi uma das cidades mais poluídas do mundo.

Em nota, a LLX reafirmou que não houve qualquer ilegalidade no contato entre a empresa e a comunidade indígena que vive no local onde planeja instalar o Porto Brasil. Segundo a nota, o contato com os índios foi feito na presença de representantes da FUNAI local. A empresa alega ainda que o espólio de Leão de Araújo Novaes (proprietário original das áreas), apoiado pela LLX, também apresentou formalmente à FUNAI propostas e alternativas de realocação das famílias indígenas, e que aguarda uma resposta do órgão.

Sobre a liminar de ontem do desembargador Prieto, a empresa informou, também em nota, que ainda não teve acesso à decisão e que, por isso, só vai se manifestar quando for comunicada oficialmente.

Empresário teve residência vasculhada pela PF

A LLX não é a única empresa de Eike envolvida em litígios na Justiça. No último dia 12, a MMX e a Acará Empreendimentos, que atuam na área de mineração no Amapá e são subsidiárias da EBX, foram alvos de uma ação da Polícia Federal (PF) por suposta irregularidades em licitação de estrada de ferro. Na ação, batizada de Toque de Midas, agentes da PF chegaram a vasculhar a casa do empresário, no Jardim Botânico, Zona Sul do Rio de Janeiro.

A ação teria sido antecipada, depois que a Justiça concedeu aos advogados de Eike Batista acesso aos autos da investigação. A intenção original era prender o empresário e o presidente da MMX, Flávio Godinho.

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Índio Tariana será candidato a prefeito em São Gabriel da Cachoeira


Pedro Garcia, um índio Tariana que recebeu sua educação formal pelos padres salesianos de São Gabriel da Cachoeira, será candidato, pela segunda vez, a prefeito no município de São Gabriel da Cachoeira.

São Gabriel da Cachoeira é um dos municípios mais interessantes do Brasil. Situa-se no norte do Amazonas e abrange um imenso território, o maior do Brasil. Compreende a maior parte dos territórios das diversas terras indígenas que compõem em conjunto o que poderíamos chamar de a grande terra indígena do Alto rio Negro, com mais de 10,5 milhões de hectares. A maioria de sua população é de indígenas, 95% dos 39.129 habitantes.

Além disso, os índios do Alto Rio Negro se organizaram numa confederação de associações locais, a FOIRN -- Federação das Organizações Indígenas do Alto Rio Negro -- talvez a mais bem organizada confederação de índios com o mínimo de ajuda de não-indígenas. Ao lado deles está o ISA -- o Instituto Socioambiental -- a maior e mais rica Ong indigenista do país, com influência em vários ministérios do governo federal e com recursos que sobram. Por exemplo, eles ganharam da Fundação Moore cerca de 2,8 milhões de dólares para ajudar os índios a cuidar do território já demarcado e a fazer ações que levem à demarcação de mais 1 milhão de hectares de terras indígenas no Alto Rio Negro. O ISA tem uma sede em São Gabriel da Cachoeira que é considerada o edifício mais bonito e chique da cidade, no alto de um morro que mira o rio Negro e, de longe, a cadeia de montanha denominada, A Bela Adormecida.

Por tudo isso, por que um indígena, com 95% da população sendo indígena, não se elege em São Gabriel da Cachoeira?

O que falta para que os parentes indígenas dêem apoio a alguém de sua gente, com educação formal e capacidade administrativa?

Bem, talvez em 2004 Pedro Garcia, o candidato indígena, ainda não tivesse experiência administrativa forte, embora já tivesse sido diretor da Coiab e da própria FOIRN.

Porém, em 2005 eu mesmo, enquanto presidente da Funai, o nomeei para ser administrador da Administração de Manaus, talvez a mais importante das administrações da Funai. Pedro ficou na Funai até maio de 2006 e fez uma boa administração. Porém, iludido pelo canto da sereia cantado por alguns índios espertos, Pedro saiu da Funai para se candidatar a deputado federal e não se elegeu.

É a sua vez agora, Pedro Garcia. Espero e torço para uma maioria esmagadora dos índios do Alto Rio Negro votem em você e apoeim sua administração futura. Não podem falhar com você.


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Indígenas disputam eleições em São Gabriel da Cachoeira

MANAUS - O município de São Gabriel da Cachoeira (a 852 quilômetros a noroeste de Manaus) tem uma chapa indígena para prefeito e vice-prefeito. Pedro Garcia Tariano (PT) e André Baniwa (PV) se uniram para disputar a prefeitura nas eleições deste ano.

De acordo com a Fundação Estadual dos Povos Indígenas (Fepi), São Gabriel da Cachoeira tem a maior população indígena do Estado, correspondente a 95% dos 39.129 habitantes, segundo o censo populacional do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2007. O Tribunal Regional Eleitoral do Amazonas (TRE-AM) registrou 21.163 eleitores no município.

Tariano criticou o fato de o município ter a maior população indígena do Estado, mas nunca ter eleito um prefeito nativo. Segundo ele, a população vê com descrédito a candidatura de um índio. “O índio é visto como um bicho incapaz, sem caráter, sem compromisso e sem capacidade de administrar uma cidade“, disse o candidato que disputa pela segunda vez o cargo de prefeito no município.

Índio da etnia Tariano, Garcia tem 47 anos, é formado em técnico agropecuário e filiado ao PT desde 2003. Foi integrante do movimento sindical pela Central Única dos Trabalhadores (CUT) e administrador da Fundação Nacional do Índio (Funai) em Manaus por oito meses. Já André pertence à etnia Baniwa, tem 37 anos, já foi filiado ao Partido da República (PR) e atua como líder indígena.

Também são candidatos em São Gabriel o atual prefeito Juscelino Gonçalves (PMDB), Raimundo Quirino Calixto (PRP), Hamilton Bezerra Gadelha (DEM) e René Coimbra (PCdoB).

Funai não terá Plano de Carreira Indigenista este ano

Andam ainda meio desencontradas as notícias sobre o aumento salarial dos funcionários da Funai. Este só virá com nova Medida Provisória, ainda não esboçada completamente.

Apesar do esforço feito pelo líder Kayapó Akyaboro, na reunião da CNPI, quando cobrou duramente do presidente Lula o Plano de Carreira, a Funai não terá um Plano de Carreira este ano. Parece que pode haver uma melhora na folha salarial, com alguns desenquilíbrios entre funções, mas o Plano não será para este ano.

Haverá chances para o próximo ano? Não sabemos mais. O governo não quer. O presidente Lula fala aos índios que quer, mas, como disse Akyabora, quem manda nele é outro.

Eis como a Condsef se posicionou na última reunião que teve com funcionários do Ministério do Planejamento, conforme matéria jornalística da Hora Online.


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A Condsef criticou ainda a proposta do governo para a Funai que ignora a criação de uma carreira indigenista, apoiada pelo presidente Lula, e cria uma gratificação de exercício na remuneração do setor. Tal gratificação não só precariza a tabela remuneratória da Funai como exclui os aposentados da proposta. O governo sinalizou que a gratificação de exercício está sendo substituída por uma gratificação fixa.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

O Índio na História: Cap.8 - O Tempo do Serviço de Proteção aos índios

Capítulo VIII
O Tempo do Serviço de Proteção aos índios


O século XX alvoreceu com a Rebelião do Alto Alegre, que foi o acontecimento mais abrupto e violento, e ao mesmo tempo mais significativo, da história recente dos Tenetehara. De certa forma essa rebelião pode ser vista como uma reação tardia ao devastador ataque que os Tenetehara sofreram no início do século XVII pelas tropas de Bento Maciel Parente, o qual submeteu esse povo ao domínio colonial. A explosão de violência e a resistência guerreira que caracterizaram essa rebelião alavancou os Tenetehara a uma posição menos submissa e mais respeitosa na convivência com a sociedade regional e com as autoridades públicas.

Ainda assim, no passar dos anos, essa convivência continuou a se realizar nos moldes da relação de patronagem. Os brasileiros regionais e as autoridades públicas não abriram mão de sua superioridade social em relação aos Tenetehara, tratando-os como seres inferiores, portadores de uma cultura indigente, sem compreensão maior da vida social brasileira, capazes apenas de agüentar a dureza de uma vida nas matas, indolentes, sem previdência e, ao mesmo tempo, ingratos, temperamentais, infantis, inconfiáveis, dados a arroubos de violência e traição. Por sua vez, os Tenetehara viam os civilizados como usurpadores de sua condição original, de suas terras e de suas mulheres, inconfiáveis, violentos, maltratantes, enganadores, aproveitadores, odientos, mas, ao mesmo tempo, gente de poder e riqueza de quem se precisa para viver uma vida que não era mais como a de seus antepassados. É nessas condições e sentimentos que se realiza a patronagem interétnica no Maranhão, e que dá o tom através do qual a sociedade tenetehara vai afinando suas expectativas culturais, reagindo e se adaptando às mudanças que vão ocorrendo ao seu redor.

A proximidade e a intensidade do relacionamento interétnico vão aumentando dia-a-dia em função do crescimento das populações respectivas de índios e civilizados, bem como da atuação, ou ausência, do novo órgão indigenista. A continuada queda populacional, depois a virada para o sustentado crescimento demográfico, o processo arrastado porém tenso da demarcação de terras e a participação social e política mais ampla dos próprios Tenetehara serão novos fatores que irão pôr em questão os hábitos e expectativas mútuas instaurados desde o século anterior. Ao final, pela década de 1980, a patronagem já não dá mais conta de suportar as novas exigências da convivência interétnica e entra em crise. Este capítulo vai analisar o desenrolar das primeiras sete décadas do século XX, ou mais precisamente da fundação (1910) ao final da atuação (1967) do Serviço de Proteção aos índios (SPI) sobre os Tenetehara.

A criação do Serviço de Proteção aos Índios - SPI

O Serviço de Proteção aos índios foi instituído pelo Decreto 8.072 de 20 de julho de 1910 e inaugurado simbolicamente a 7 de setembro. Há alguns anos o índio vinha sendo objeto de um renovado interesse nas grandes cidades brasileiras (lembrando o interesse despertado nas décadas de 1840 e 1850), como parte até de uma busca de identidade republicana, nacionalista, e era discutido em vários setores intelectuais, especialmente na Igreja do Apostolado Positivista Brasileiro, e por extensão entre os positivistas em geral, no Museu Nacional, ambos no Rio de Janeiro, e no Centro de Ciências, Letras e Artes, de Campinas, São Paulo. O assunto suscitava igualmente interesse político e de âmbito nacional, não estando restrito aos estados amazônidas, pois havia índios autônomos até em São Paulo e Minas Gerais. Em 1907 um cientista social, que havia passado algum tempo entre os imigrantes alemães do sul do Brasil, acusou o governo brasileiro de fazer vistas grossas diante dos massacres que “bugreiros”, a mando desses imigrantes, estavam perpetrando contra índios Coroados (Kaingang) que viviam autonomamente no Paraná e Santa Catarina. Nesse mesmo ano o cientista teutônico, diretor do Museu Paulista, Hermann von Ihering, publicou um artigo em que considerava impossível compatibilizar o progresso com a presença de índios no estado de São Paulo, e por extensão em todo o Brasil. Por sua vez, a construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, que atravessava São Paulo em direção ao Mato Grosso, esbarrava com a resistência de bandos autônomos de índios Kaingang, resultando em algumas mortes e ferimentos de trabalhadores e na contratação de matadores de índios. Semelhantes notícias de ataques a índios vinham de outros quadrantes, como do vale do Paranapanema, no oeste paulista, ao longo do rio Doce, de Minas Gerais ao Espírito Santo, e no sul da Bahia. O escândalo assomava de grandes proporções, e em decorrência formou-se um movimento na imprensa para pressionar o governo Nilo Peçanha para resolver esses problemas. Como havia também um movimento para que o governo tomasse providências em relação à multidão de lavradores sem terra, negros e mestiços que perambulavam pelas cidades, em oposição a imigrantes estrangeiros que já recebiam atenção oficial, o governo achou por bem juntar os dois problemas, e assim criou o Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN) . Entretanto, logo ficou evidente tanto a grandeza dos encargos atribuídos ao novo órgão, quanto a incompatibilidade entre os dois setores, e, a partir de 1914, o órgão passou a cuidar exclusivamente de índios. Em 1918 a tarefa de localização de trabalhadores nacionais foi retirada formalmente e o órgão passou a ser conhecido como SPI .

Para o Estado brasileiro, republicano de pouco mais de duas décadas, o SPI iria fazer parte de sua política de ampliação de controle do território nacional e de abertura de novas terras à expansão agrícola, uma tarefa estratégica desde os tempos de Colônia e da qual o Império tinha se incumbido por meio de órgãos equivalentes. Já os fundadores e organizadores do SPI esperavam fincar bases sólidas capazes de proteger os índios dos efeitos mais deletérios do relacionamento com a sociedade brasileira e de dar-lhes condições materiais para chegarem a um patamar mais alto em suas culturas. Seus mais ardorosos defensores se irmanavam como militares e cientistas e se articulavam através da filosofia positivista, que no início do século era um dos principais marcos teóricos da discussão sobre o Brasil, tendo, além de profissionais liberais, vários políticos e governadores de estado como adeptos (Nachman 1977). Os propósitos doutrinários do SPI propugnavam que, com a proteção às pessoas e às terras indígenas, bem como através de uma dose de intervenção de ordem laboral e educacional, obviamente não religiosa, os índios eventualmente evoluiriam de seu suposto estágio de organização matriarcal e religião animista para um tipo de sociedade mais contemporânea, integrando-se efetivamente na sociedade brasileira. O índio era um ser puro, não contaminado pelos vícios da civilização, e, ao transcender seus limites culturais poderia vir a ser um exemplo para a sociedade brasileira, especialmente as camadas mais pobres. Um índio melhorado faria o Brasil melhor, eis o que mais profundamente inspirava os positivistas, que, naquela quadra exerciam bastante influência em meios militares e em segmentos da classe média educada. Os mais ortodoxos deles se arregimentavam em torno da Igreja do Apostolado Positivista, enquanto os simpatizantes se espalhavam em revistas e jornais, como professores, militares, engenheiros e outros profissionais liberais, ao todo movimentando muitas associações pelo país afora (Lins 1967; Nachman 1977).

Um membro militar desse movimento, que já despontara por sua liderança e seu trabalho frente à equipe nacional de implantação de linhas telegráficas pelo interior do país, era o então coronel Cândido Mariano da Silva Rondon. Quando o governo considerou a oportunidade de criar um órgão para tratar da questão indígena não havia dúvidas de que Rondon seria o seu chefe. Durante sua vida e após sua morte, Rondon tornou-se chefe inconteste do SPI, um herói nacional, um “pai” para os índios, com um prestígio e admiração nacionais sem paralelo. Além de ser patrono da Engenharia do Exército, seu nome foi dado a um dos estados amazônidas, Rondônia.

A história da criação do SPI já foi contada por alguns de seus protagonistas, como o próprio Rondon (1937), Horta Barbosa (1923), Bandeira (1919), Brazil (1937), Oliveira (1947), Souza (1955), Vasconcellos (1939, 1941) e outros estudiosos, como Stauffer (1959-1960) e Lima (1992), e seu desempenho até a década de 1960 foi avaliado positivamente por Ribeiro (1962). Em outro estudo (Gomes 1991) fiz uma breve análise sobre o SPI e a atuação da FUNAI, que o sucedeu em fins de 1967, em pleno regime militar, até os dias de hoje. Em breve avaliação pode-se dizer que Rondon e seus companheiros tinham a convicção de que os índios brasileiros eram parte integrante e original da nação brasileira, a qual tinha sido em toda a sua história extremamente cruel e injusta para com eles. Havia assim um elemento de expiação de culpa que a nação devia assumir. Os próceres do SPI se inspiravam num célebre texto escrito por José Bonifácio em 1823, no qual os índios, apesar de serem vistos como gente indolente e sem cultura, deviam ser integrados à nação através do ensinamento, do exemplo e da persuasão, nunca por violência e sim por métodos brandos (Bonifácio 1998). Rondon, como positivista, acreditava que o Estado brasileiro devia assumir, como representante de toda a nação, a tarefa de redimir os índios e dar-lhes melhores condições de vida e de respeitabilidade. Nesse sentido, os inimigos dos índios, que eram muitos, seriam ipso facto inimigos da nação.

A atuação do SPI, junto com a FUNAI, tornou-se, na realidade, o principal fator de influência sobre o relacionamento interétnico em todo o Brasil até o final do século XX. Isto não significa que esses órgãos indigenistas tenham sido capazes de intermediar como se propunham o contato direto entre índios e brasileiros, o qual desde o início permaneceu nos moldes da relação patronalista, nem que seu poder oficial tenha sido satisfatoriamente acatado pelos brasileiros em suas relações com os índios, muito menos resguardado pelos próprios índios. Ainda assim, a presença federal desses órgãos tornou-se um obstáculo à natureza espoliativa da sociedade de fronteira brasileira e proveu os índios de meios oficiais com os quais puderam reagir a injunções políticas e econômicas regionais e à sorrateira cultura de esbulho dos brasileiros com os quais mantêm contato.

Desde então tanto os brasileiros como os Tenetehara têm consciência da presença de um órgão indigenista do Estado e de seu poder de intervenção. Nos primeiros anos esse poder parecia muito com o poder dos diretores parciais do tempo do Império, mas aos poucos foi sendo imposto um novo estilo de defesa dos índios, mais aguerrido, mais ideológico, portanto mais convicto, e com respaldo federal. É certo que, nem o SPI nem a FUNAI foram capazes de elevar os índios à condição de cidadãos plenos, com direitos específicos, ou, no caso dos Tenetehara, de equipará-los em direitos e respeitabilidade aos demais brasileiros, e isso por vários fatores. Primeiro, seus planos de ação têm sido invariavelmente inconsistentes, tanto na sua formulação programática quanto na sua prática. Freqüentemente são realizados com base em expectativas irreais ou falsas sobre o comportamento dos índios. Segundo, seus funcionários têm sido quase sempre despreparados para essa difícil tarefa de mediação, com interesses pessoais e culturais próprios, havendo, até a década de 1980, muito pouca participação dos próprios índios. Terceiro, são órgãos do governo brasileiro e portanto seguem os ditames de sua política do momento, a qual leva muito pouco em consideração os interesses dos índios. Quarto, muitos dos administradores brasileiros dos programas do órgão indigenista, os inspetores, delegados e encarregados dos escritórios regionais e os chefes de postos indígenas, têm sido incompetentes e não raro levianos e corruptos. E quinto, a forma de relacionamento imposto pelo SPI e seguido pela FUNAI trata os índios como homens relativamente capazes, cujas demandas são freqüentemente vistas como infantis e sem sentido, e cujo modo de ser precisa ser modificado para que haja progresso e sua culturas se alinhem com a cultura brasileira envolvente. Entretanto, a afirmação da responsabilidade do Estado brasileiro para com os povos indígenas, através de uma política indigenista e de um órgão gestor, e a consolidação da aceitação do índio no panorama nacional são legados da atuação do SPI e dos companheiros de Rondon.

O SPI administrou a questão indígena a partir de leis e regulamentos que só foram ganhar respaldo constitucional a partir da Constituição de 1934. O primeiro regulamento interno do SPI consta no próprio ato de sua criação e diz respeito à filosofia geral do órgão, ao modo geral de instalação de inspetorias regionais, visita às áreas indígenas, edificação dos postos indígenas e modo de tratar com os índios. Em 1911 ele foi confirmado pelo Decreto n.º 9.214, que mais amplamente traçou as bases da política indigenista que haveria de permanecer, com modificações posteriores, até o fim do SPI. O Código Civil de 1916, apesar das objeções feitas pelo grande jurista Clóvis Bevilácqua (Ribeiro 1962: 115), exonerou o índio da condição de órfão e da tutela dos juizados respectivos, mas o consignou como pessoa de capacidade civil restrita, equiparado aos menores de 21 anos, aos pródigos e às mulheres casadas. O SPI foi instituído dentro do Ministério da Agricultura e lá ficou até 1931, quando passou para o Ministério da Indústria e do Trabalho até 1933, sendo daí rebaixado como um simples setor do departamento de fronteiras do Ministério do Exército, e, enfim, novamente incluído na Agricultura a partir de 1939. A direção central se localizava no Rio de Janeiro, de onde partiam as recomendações para instalação de postos, demarcação de terras, contato com povos indígenas autônomos, admissão e demissão de funcionários, etc. Desde sempre a liderança do órgão ficou com o general Rondon, que o administrava com o auxílio de companheiros militares e civis que entraram no órgão desde o princípio, como Luís Bueno Horta Barboza, José Bezerra Cavalcanti, o Capitão Manoel Rabelo, Vicente de Paula Vasconcellos, o Tenente Antonio Estigarribia, José Maria de Paula e outros. Após a primeira quinzena de anos de experiência com muitas etnias indígenas e diversas condições interétnicas, o governo federal promulgou, por recomendações do SPI, a Lei n.º 5.484 de 27 de junho de 1928, que regulou a situação jurídica dos índios, colocando-os sob a tutela do Estado, como já de fato o era. As etnias indígenas foram classificadas segundo o seu maior ou menor grau de proximidade, relacionamento e consequentemente conhecimento com a sociedade brasileira envolvente. Assim, as etnias que ainda não se encontravam em contato com a sociedade brasileira, antes conhecidos como índios selvagens, passaram a ser rotulados como grupos nômades; os que tinham contato mais permanente passaram a ser chamados de grupos aldeados ou arranchados; uma terceira modalidade seria de grupos reunidos em povoações indígenas e uma quarta em grupos incorporados a centros agrícolas. Cada categoria seria assistida diferencialmente, embora nunca foi estabelecido com precisão em que se constituíam as duas últimas categorias, já que não havia povoações indígenas diferentes dos seus aldeamentos, nem havia centros agrícolas com presença de índios desde que a localização de trabalhadores nacionais saíra da responsabilidade do SPI. De qualquer forma, essa classificação projetava o destino que se queria dar ao índio, isto é, sua incorporação na massa de brasileiros agricultores pobres.

O estatuto de capacidade civil restrita continua a se aplicar genericamente a todos os índios, independentemente do nível de aproximação e semelhança com a sociedade e cultura brasileiras, ou de outras considerações, simplesmente porque o Congresso Nacional ainda não criou um novo código civil.

No que diz respeito aos Tenetehara, passados quase 400 anos de relacionamento, a condição de menoridade relativa apresenta algumas vantagens e outras desvantagens. Sendo menores são protegidos pelo Estado em seus direitos civis e coletivos, ou étnicos, inclusive quanto à invasão de suas terras por brasileiros. Também significa que não podem ser punidos diretamente por autoridades civis ou militares por delitos civis ou crimes contra o Estado, nem mesmo por roubo ou assassinato. É claro que essas prerrogativas não são seguidas estritamente apesar de poderem ser evocadas a qualquer momento. Por outro lado, sendo menores os Tenetehara estão impedidos de estabelecer relações comerciais com outrem, a não ser pela intermediação do órgão tutor. Na prática, isso pouco funciona, mas, nos casos de exploração da mão-de-obra indígena ou esbulho de seus bens, pode ser usado para desfazer tratos verbais entre índios e seus exploradores. Por outro lado, atrapalha quando um índio deseja fazer um cadastro com agências de crédito, como um banco do estado, um relacionamento que poderia diminuir a presença do relacionamento patrão-cliente que tem funcionado como sistema de crédito entre índios e brasileiros. Além do mais, os Tenetehara não podem, em tese, votar em eleições, nem se candidatar a cargos públicos, o que poderia dar-lhes uma certa força na política dos municípios próximos às suas terras. Porém, de fato, essa desvantagem tem sido ultrapassada na prática, desde o exemplo que foi dado a toda a nação pelo líder Xavante Mário Juruna, quando se elegeu, à revelia de seu status de menor, deputado federal pelo Rio de Janeiro, em 1982. O estatuto de menor de 21 anos de idade não exclui os Tenetehara da participação no sistema de previdência social, com pensão rural para os indivíduos acima de 65 anos e assistência de saúde para todos, a qual é provida pelo Instituto Nacional da Previdência Social.

SPI em ação no Maranhão

Uma boa parte das ações indigenistas que o SPI realizou no Maranhão dizem respeito aos problemas de escolha, definição, disputas e controvérsias sobre a demarcação das terras dos índios, cujo processo será tratado em toda sua amplitude no Capítulo X. Aqui tratarei mais diretamente das questões relacionadas com a criação de postos indígenas, a ajuda econômica e a assistência à saúde, o modo de relacionamento que estabeleceu com os índios e a mediação propriamente dita entre os índios e a sociedade regional.

O SPI foi instalado como 3ª Inspetoria Regional em São Luís do Maranhão em 15 de março de 1911, no salão nobre do Palácio dos Leões, sob o beneplácito do governador Benedito Leite, pelo então Tenente Pedro Ribeiro Dantas, auxiliar direto do General Rondon. Estava presente o ex-promotor, redator do jornal “O Norte” e político de Barra do Corda, Frederico Figueira, que levantou vivas ao ministro da Agricultura Rodolfo Dantas, a Rondon, Gonçalves Dias e José Bonifácio e elogiou o sentido do SPI como órgão que iria favorecer o aproveitamento da mão-de-obra indígena para “nossas indústrias” (“O Norte”, n.º 946, 15/4/1911).

Após uma primeira avaliação in loco pelos rios Pindaré, Turiaçu e Gurupi, o inspetor Pedro Dantas determinou o estabelecimento de dois centros agrícolas, um no município de Alcântara e outro no rio Pindaré, além de dois postos indígenas de atração para os Urubu-Ka’apor, um no rio Gurupi, na boca do rio Jararaca, e o outro no rio Turiaçu, perto do povoado Palmeiras. A preocupação maior do Capitão Dantas, como de resto do SPI e da sociedade regional, era a pacificação dos Urubu-Ka’apor, que naqueles anos aterrorizava todo o oeste maranhense, especialmente os moradores e os Tembé-Tenetehara do rio Gurupi. Nesse afã, os Tembé iriam ser deixados de lado e sofreriam uma terrível queda demográfica entre 1920 a 1949, passando de 1.200 para uns 70 e poucos indivíduos, sem que os postos que serviam aos Urubu-Ka’apor e a eles próprios os assistissem devidamente.

Por volta de 1918 o inspetor Pedro Dantas já tinha um levantamento global dos índios que viviam na sua jurisdição. Provavelmente ele, ou auxiliares seus, haviam feito viagens pelos rios Pindaré, Grajaú e Mearim, pela Estrada do Sertão e pelas terras da região Grajaú-Barra do Corda. Esse levantamento dá um total de 78 aldeias indígenas existentes no Maranhão com uma população total de 4.661 índios (sendo 1.378 homens, 1.328 mulheres, 1.104 meninos e 851 meninas), sem incluir os arredios Timbira que perambulavam pelo Grajaú e Pindaré, os Guajá, cujo nomadismo já era conhecido desde o século passado, e os próprios Urubu-Ka’apor, entre os rios Gurupi, Maracaçumé e Turiaçu. Mas contém os Tenetehara que viviam no baixo Grajaú, no município de Vitória do Mearim, índios que vão ser esquecidos desde então pelas autoridades do SPI. Infelizmente não há detalhamento por etnia, o que impede uma melhor avaliação. Pelos meus cálculos a população tenetehara do Maranhão, alguns anos depois daquele levantamento, isto é, no início da década de 1920, chegava a 4.100 ou pouco mais. Assim, o levantamento de 1918 peca por omissão, pois, na minha estimativa, ao contarmos os 600 Canela de Barra do Corda, os 300 Timbira do rio Grajaú, os talvez 100 remanescentes Crenzés e Pobzés do baixo Mearim (então município de São Luís Gonzaga) e os 600 e tantos Krikati e Gaviões do cerrado grajauense, a população indígena do Maranhão deveria estar por volta de 5.700 índios. Em 1918 deviam ser uns 6.000. O referido levantamento menciona a inclusão dos índios Tembé, que deveriam ser uns 1.100 àquela época. Porém se os excluirmos do cômputo geral, a estimativa do SPI devia ser mais ou menos correta.

Nos primeiros anos da década de 1920 todo o trabalho de contato com os Urubu-Ka’apor passou para a órbita da inspetoria do Pará, e os Tembé-Tenetehara do Gurupi também passariam a ser jurisdicionados a partir de Belém até a década de 1970. Assim, deixaremos de lado os eventos e questões relacionadas com essa região, os quais foram analisados por Darcy Ribeiro em várias ocasiões. O que vai concentrar a atenção do SPI no Maranhão são as regiões do Pindaré e de Grajaú-Barra do Corda, onde respectivamente serão instalados o primeiro posto indígena e o primeiro posto de vigilância.

1. Posto Indígena Gonçalves Dias, atualmente P. I. Pindaré

O posto indígena Gonçalves Dias foi instalado na confluência do rio Caru com o Pindaré, nas proximidades de onde já houvera a missão jesuítica de São Francisco Xavier (1726-1740) e a Colônia Januária (1854-1889), como se fosse a continuação de um velho e mal interrompido relacionamento. Foi concebido também para ser um centro agrícola, como parte da política de localização de lavradores daqueles anos primeiros do SPILTN. Assim, sua instalação se deu perto de onde estava o povoado de Santa Cruz, com algumas famílias de lavradores brasileiros. Ao seu lado, ao seu dispor e para sua melhor atuação, havia uma aldeia tenetehara com algumas famílias indígenas, reencenando o modelo que vinha do século passado e que continuaria por mais alguns anos até que fosse estabelecido uma clara separação entre índios e lavradores pobres.

Existem pouquíssimas informações sobre os primeiros anos deste posto indígena, como de resto sobre este primeiro período da 3ª Inspetoria que vai até a década de 1940. Os seus arquivos foram jogados fora por um delegado da FUNAI em 1975 e um incêndio queimou grande parte dos arquivos centrais do SPI, já em Brasília, em 1966. Os poucos documentos que restaram nas inspetorias regionais foram coletados em meados da década de 1970 pelo antropólogo Carlos Moreira Neto, que criou um arquivo de documentação do que sobrou no Museu do índio, do Rio de Janeiro. Assim, do que foi possível pesquisar nesses documentos, para os anos 1914, 1918, 1929, 1930, 1933, 1934, 1941, 1942, 1943, 1948, 1949 e pela década de 1950, dos dados obtidos nos diários de campo e no livro de Wagley e Galvão, e das informações que colhemos em campo com velhos ex-funcionários, inclusive com o filho natural e mestiço do primeiro chefe do posto Gonçalves Dias, foi-nos possível traçar o quadro seguinte sobre esse primeiro posto do SPI no Maranhão.

O primeiro encarregado, como então se chamava o responsável pelo posto indígena Gonçalves Dias, foi um homem educado, de orientação positivista, chamado Luiz Riedel. Os Tenetehara velhos contam que ele era alemão, mas seu português escrito demonstra perfeito domínio. Em um único relatório conhecido, datado de 31 de dezembro de 1914 , Riedel se dirige ao inspetor Pedro Dantas para relatar a instalação e funcionamento do seu posto, bem como o relacionamento com os Tenetehara da região e sua população. Em oito páginas manuscritas, Riedel situa o posto na confluência do rio Caru com o Pindaré, enumera as atividades de construção dos edifícios do posto e feitura de roças, e arrola o número de aldeias e a população tenetehara que estão sob sua jurisdição. Ao todo estima que há cerca de 1.200 Tenetehara no vale do Pindaré, sendo 200 no alto rio Caru, 400 no alto Pindaré, na região conhecida como Sapucaia, onde havia povoado de civilizados, e 600 nas 15 aldeias da Estrada do Sertão, que ia de Santa Inês, abeirando o rio Zutiua, até a aldeia Presídio. Esses números parecem muito parcos, especialmente no caso do alto Pindaré e pelo tamanho médio das aldeias da Estrada do Sertão. Registre-se ainda que não é mencionada a presença de índios no baixo Pindaré, tais como as aldeias Ilhinha, Tarupau, ou Lagoa Comprida, cuja existência vem desde meados do século XIX e que aparecem nos documentos posteriores. Parece outrossim que Luiz Riedel não teria incluído as aldeias do rio Buriticupu. Meu próprio cálculo é de que a população desses lugares mencionados devia estar em torno de 1.700; seria de 2.000 incluindo as aldeias do Buriticupu. Em relação aos dados de 1900, quando havia cerca de 3.000 Tenetehara em toda a região, a queda populacional é da ordem de 33%. O relatório menciona também que havia até meados daquele ano uma aldeia tenetehara próximo ao posto, com 45 índios, mas que, devido a uma epidemia de malária (impaludismo), 29 deles teriam se retirado para mais distante e estabelecido nova aldeia. Apenas dezesseis índios em seis famílias permaneciam na aldeia do posto. Naquele ano de 1914 Riedel havia inaugurado uma escola, em prédio próprio, tendo matriculado 24 meninos, por certo a maioria de brasileiros do povoado ao lado. Acontece que, com a mudança dos seus pais para a nova aldeia, a freqüência havia caído para apenas cinco alunos, os quais estavam “aprendendo regularmente a cartilha da infancia, escriptas e etc”.

Algumas preocupações assinalam o teor desse relatório e indicam o sentido que o recém criado SPI pretendia imprimir em suas atividades. Em primeiro lugar estava o controle da população indígena, os Tenetehara primeiramente, depois os ainda não contatados Urubu-Ka’apor, Timbira e Guajá. Os Ka’apor tinham suas aldeias no Gurupi, a oeste, e nas cabeceiras do Turiaçu, a norte. Os Timbira constituíam na verdade dois grupos: um que tivera suas aldeias no baixo Turiaçu, os Krejé, desde meados do século anterior haviam se deslocado para o Gurupi; o outro ficava a leste, com aldeias no rio Grajaú, e, desde finais do século XIX, vinham atacando as boiadas que passavam pela Estrada do Sertão, tendo em 1890 atacado a própria Colônia Januária, lugar agora do posto Gonçalves Dias. Quanto aos Guajá, são encontrados vestígios de sua presença no caminho que Riedel mandara abrir para conectar o posto às aldeias tenetehara localizadas na Estrada do Sertão. Ele promete se esforçar para contatar os Guajá, os quais, na verdade, só irão ser contatados em 1973. As demais aldeias tenetehara são alcançadas por via fluvial. Riedel enfatiza por diversas vezes que os índios estão prestando “atenção” ao posto e vice-versa, com isso querendo dizer que os índios estão seguindo suas determinações. Mas reclama que os Tenetehara que vivem no lugar Sapucaia não dão a devida atenção ao posto em virtude da influência dos moradores brasileiros. Há, portanto, um posicionamento político claro de se ter o monopólio do relacionamento com os índios. Estava também em suas atribuições a mediação econômica, e Riedel não deixa de relatar que havia feito diversas viagens a Colônia Pimentel e à cidade de Engenho Central (depois Pindaré-mirim) para comercializar os produtos dos índios, especialmente farinha de mandioca e óleo de copaíba. Os Tenetehara do lugar Sapucaia estavam sendo “desatenciosos” para com o posto devido ao seu envolvimento econômico com os moradores locais, que lhes compravam sua produção de copaíba e fumo a preços aviltantes.

Em segundo lugar, há uma preocupação em estabelecer o posto indígena de uma boa infra-estrutura, tanto para melhor se impor no ambiente regional como representante oficial do Estado, do governo, como para ensejar o desenvolvimento econômico dos índios. A descrição da construção de edifícios para serraria, carpintaria, olaria, casa de máquinas, grandes roças e a escola ocupa boa parte do relatório. A intenção era realmente de estabelecer algo como um centro agrícola.

Em 1918, o posto Gonçalves Dias foi atacado por um grupo de guerreiros Urubu-Ka’apor, que chegaram a matar um Tenetehara e ferir alguns mais. Não há informações sobre se à época o encarregado era ainda Luiz Riedel. O certo é que, da sua estadia com os Tenetehara, Luiz Riedel deixou um filho com uma índia, Benevenuto Riedel, que nasceu numa aldeia do rio Caru por volta de 1915 ou 1916. Parece que houve um outro ataque de guerreiros Ka´apor, e, com o colapso do preço da borracha e a saída dos moradores civilizados, não parecia fazer sentido manter o posto no rio Caru. Assim, foi transferido para o rio Pindaré num local a jusante da Colônia Pimentel, duas léguas a montante de Engenho Central (Pindaré-mirim), e em frente ao incipiente povoado de Santa Inês, que era o ponto final da Estrada do Sertão e um valhacouto de fugitivos da justiça. Deste local o SPI achava que daria para controlar e assistir as aldeias do baixo Pindaré, da Estrada do Sertão e, subindo o rio, as aldeias fluviais. Aparentemente não havia pretendentes a dono daquela área. Foram construídos nova sede e novas casas para oficinas e se atraiu algumas famílias tenetehara para virem morar em aldeia ao lado. Com efeito, o novo posto se consolidou, passando a servir de base para as atividades do SPI, e depois da FUNAI, por todo o vale do Pindaré, só restringindo a sua influência quando um novo posto foi instalado no alto Pindaré, próximo à embocadura do rio Caru, em 1973.

Nas décadas de 1920 e 1930, o posto Gonçalves Dias iria ter uma história regular de assistência aos Tenetehara, com poucas verbas e pouquíssima disposição para realizar algo mais do que mediar, quando possível, as trocas econômicas entre índios, regatões e comerciantes. Num relatório da 2ª Inspetoria do Pará, em 1930, alguns meses após a pacificação dos Urubu-Ka’apor, fica-se sabendo que a Inspetoria do Maranhão estava extinta e suas atividades incorporadas à do Pará. Sobre o posto Gonçalves Dias, o inspetor que escreve o relatório, Virgílio Bandeira (1924-40), menciona que estivera no posto em 1925 e depois em 1928 e que o achara em melhores condições. Obviamente ele estava instalado de poucos anos. Sua sede era um “chalet branco” e, com as casas ao lado, parecia uma fazenda regional. Havia uma população de 92 Tenetehara, ou 28 famílias, às quais foram acrescentados mais 28 Tenetehara, em nove famílias, em janeiro de 1929. A população civil, isto é, de brasileiros, era formada por empregados do postos, que, com suas famílias perfaziam 31 pessoas. Trabalhavam nas roças do posto, como vaqueiros, oleiros, carpinteiros e outros ofícios, mas não eram lavradores independentes, pois o posto não era mais centro agrícola. A escola tinha 27 alunos, com uma freqüência média de 20 alunos . A atividade pecuária fazia parte dos projetos de assistência econômica aos índios, mas, por muitos anos, o gado iria ser sempre “gado do posto”, servindo mais aos seus agentes do que aos Tenetehara.

Os Tenetehara que viviam no posto Gonçalves Dias foram se acostumando com a presença de chefes que se apresentavam com segurança e autoridade perante os brasileiros regionais, autoridade esta que emanava de um sistema político em cuja cabeça estava o general Rondon, de quem se falava como o “pai dos índios”, ou “papai grande”, representação máxima do “governo”. Com os karaiw do posto os Tenetehara foram aprendendo a ter um relacionamento mais paritário do que jamais haviam vivenciado, pois a maioria eram empregados humildes, que obedeciam ao chefe e que deviam tratar os índios com brandura e dedicação. Muitos se casavam com índias ou viravam compadres. O posto tentava controlar as relações econômicas dos Tenetehara com os donos de bodegas e compradores de peles e óleo de copaíba que viviam em povoados ou em moradas na beira do rio ou na Estrada do Sertão. Os capítulos XI, XII e XIII constituem um estudo detalhado dessas relações. O chefe do posto se interpunha como uma autoridade que exigia a obediência às suas determinações desses vendedores e compradores, bem como de qualquer brasileiro que tivesse explorado algum Tenetehara, economicamente ou moralmente. Os Tenetehara confiavam nesse apoio, enredavam dos maltratantes, embora vissem que nem sempre as coisas aconteciam conforme mandado pelo chefe do posto. Às vezes nem gostavam de tanta interferência. Seu relacionamento com o chefe era baseado na patronagem, o que implicava hierarquia e acordos. Mas, ao contrário, da patronagem com brasileiros avulsos, havia aqui tanto mais autoridade de mando quanto mais impunidade no não cumprimento. Os chefes de posto sabiam que não podiam forçar situações adversas aos índios, e estes sabiam que podiam desobedecer e apelar para autoridades mais altas, em ambos os casos porque sabiam que a filosofia do SPI exigia o respeito ao índio e o acatamento de suas motivações, exceto nos casos extremos de violência e assassinato. Havia chefes mais duros, chefes mais brandos, assim como havia Tenetehara mais obedientes e os mais rebeldes.

Não há informações sobre os encarregados do posto Gonçalves Dias até o relatório que José Teodoro Mendes envia ao Inspetor Virgílio Bandeira dando conta de sua administração no ano de 1934. É provável que José Mendes tenha entrado no SPI antes de 1931, quando, após a Revolução de 1930, o órgão perde força política e passa a ser um departamento do novo Ministério da Indústria e do Trabalho, até outubro de 1933, quando é transferido para o Ministério da Guerra. Nesse período o SPI vai perder verbas e assim desativar diversos postos indígenas ou deixar sem poder de atuação tantos outros. É o que aconteceu no Maranhão, especialmente na região de Barra do Corda, como veremos mais adiante. No relatório geral da 2ª Inspetoria do Pará e Maranhão, de 1933, o posto Gonçalves Dias é dado como cuidando de uma população de 1.512 índios em 21 aldeias. Já o relatório de José Mendes apresenta, para o ano seguinte, uma população de 1.165 Tenetehara vivendo em 18 aldeias, o que dá uma média de 64 pessoas por aldeia. É possível, portanto, que as três aldeias e os outros 347 índios fossem Timbira do baixo Mearim ou Tenetehara do médio Grajaú, incluídos no relatório de 1933. As aldeias arroladas por José Mendes são: Aldeia do Posto (com 97 pessoas); Contra-Erva (31); Rodagem (54); Lagoa Comprida (79); Tarupau (55); Ilhinha (53); Gabriel (94); Grota (62); Caruzinho (125); Pau Santo (52); Palmeira (131); Batatal (18); Limão (33); Cigana (42); Queimadas (39); Pariranaua (47); Jenipapo (75), e Tauari Queimado (78). As primeiras seis aldeias são localizadas no baixo Pindaré, perto do posto e do lago Tarupau, que é formado pela embocadura do rio Zutiua. As três seguintes são aldeias do médio e alto Pindaré, com uma população bastante baixa de 281 pessoas. A aldeia Caruzinho, apesar do nome, não era mais localizada na beira do rio Caru, de onde os Tenetehara teriam saído por medo de ataques dos Urubu-Ka´apor, alguns descendo para o baixo Pindaré, outros subindo para as aldeias da Sapucaia. O encarregado menciona que as aldeias do Gabriel e do Marcelino são as maiores do alto Pindaré, mas não arrola esta última na sua lista, nem tampouco se refere à região da Sapucaia, onde se sabe que ainda em 1942 havia a aldeia da Grota. As demais nove aldeias estão na Estrada do Sertão até Tauari Queimado, e não inclui as aldeias mais acima no alto Zutiua, centradas nas aldeias do Presídio e Cururu, que por essa época eram já supervisionadas pela Vigilância de Barra do Corda.

O encarregado José Mendes escreve que uma epidemia de varíola grassara forte naquele ano de 1934, com algumas mortes, e que por isso diversas famílias tinham pedido licença para fazer aldeia na mata, onde seria mais sadio para passar o inverno (estação das chuvas), e não ficar na beira do rio. No ano anterior um grupo de índios Urubu-Ka’apor, já em relacionamento pacífico com os postos indígenas do rio Gurupi, apareceu no posto para pedir brindes e por algum motivo se aborreceu com os Tenetehara, atirou flechas em alguns e matou um deles, antes que os Tenetehara pudessem reagir. Depois fugiram. O incidente é lembrado pelos velhos Tenetehara com quem entrevistei na década de 1970. José Mendes escreve ainda que o engenho do posto havia fabricado 946 quilos de açúcar e cita a compra de diversos produtos dos índios trazidos das aldeias do alto Pindaré. Diz que a compra não fora tão grande porque havia dois civilizados morando naquelas aldeias e comprando os produtos dos índios por preços irrisórios. No curral do posto havia dezessete rezes.

Em 1936, um evento inesperado vai tirar o posto do marasmo e colocá-lo fora de atividade permanente por algum tempo. Sob a alegação de que José Teodoro Mendes era comunista e estaria insuflando os índios a fazer parte da abortada intentona comunista, a polícia da vila de Engenho Central invadiu o posto, metralhou a sua sede e prendeu José Mendes, causando um enorme alvoroço entre os índios. Logo ficou claro que a causa dessa invasão partia de acusações feitas por pessoas que estavam interessadas na retirada dos índios e na liberação da área . O susto foi grande, os boatos e ameaças continuaram a circular e o SPI achou por bem manter José Mendes em São Luís por algum tempo. O posto Gonçalves Dias entrou em dormência por dois ou três anos, com funcionários vindo de São Luís para marcar presença na região, mas não permanecendo muito tempo. Esse incidente indica que gente estabelecida na região se aproveitou da falta de prestígio e apoio políticos federais do órgão indigenista naqueles anos para desmoralizá-lo. A presença de índios numa região que lentamente começava a crescer pela chegada de imigrantes nordestinos e mascates sírios suscitava nessa pequena elite rural a premonição de que melhor seria se livrar deles enquanto era tempo. Não conseguiram realizar seu intento, mas continuariam a minar a autoridade dos chefes de posto em relação aos índios e às suas terras.

A partir de 1939, o SPI começou a recuperar seu prestígio nacional e isso repercutiu imediatamente no posto indígena Gonçalves Dias. Em meados de 1939 diversas famílias tenetehara lideradas por José Viana se mudaram do baixo Grajaú para a aldeia Lagoa Comprida, na embocadura do Zutiua com o Pindaré, fazendo um caminho de volta da migração que iniciara um século antes. Certamente vieram porque a vida em suas terras do baixo Grajaú estava ficando difícil e porque havia alguns novos atrativos no posto do baixo Pindaré.

Em dezembro de 1939 aconteceu um incidente que iria repercutir por muitos anos na memória oral local e na história do SPI. O índio Urubu-Ka’apor, conhecido como Uirá, que estava sendo conduzido de volta à sua aldeia via rio Pindaré, saltou do barco e foi devorado por piranhas, já perto do posto indígena Gonçalves Dias. Uirá vinha acompanhado da mulher, filho e um servidor do SPI, após ter passado alguns meses de viagem “à procura de Maíra” - que é também o herói civilizador desse povo - desde sua aldeia no rio Turiaçu até São Luís. Havia sofrido horrores nas mãos incompreensíveis da população rural e das autoridades das cidades por onde passara, e, não encontrando meios de chegar à morada de Maíra, achara melhor pôr fim à vida. Esse acontecido extraordinário, que chamara a atenção da sociedade ludovicense, foi interpretado como um ato de heroísmo suicida por um indivíduo que não se conformava com as conseqüências que advieram do contato interétnico com seu povo (Ribeiro 1974: 13-30).

Em fevereiro de 1941, o posto Gonçalves Dias recebeu a visita do sertanista José Maria da Gama Malcher, que alguns meses atrás estivera em São Luís tomando providência para a reinstalação da nova 3ª Inspetoria Regional do Maranhão. O propósito de Malcher era re-estruturar o velho posto e fazer um levantamento da situação dos índios do Maranhão para decidir onde instalar novos postos indígenas. O órgão indigenista estava passando por uma reformulação encetada pela nova visão política do Estado Novo e a reconciliação de Rondon com Getúlio Vargas. Nessa ocasião o SPI voltou a pertencer ao Ministério da Agricultura, ganhou o Conselho Nacional de Proteção aos Índios como órgão de assessoramento, e passou a receber um montante mais elevado de verbas . Malcher viera acompanhado de José Teodoro Mendes, a quem prestigiou por sua longa temporada junto aos Tenetehara, sendo efetivado a partir do fim daquele ano como o novo inspetor do Maranhão. Malcher era já o inspetor da 2ª Inspetoria do Pará, onde permaneceu até 1947, quando foi chamado para administrar o setor de orçamento e administração (SOA) do SPI, no Rio de Janeiro, do qual passou a ser diretor geral entre 1951 e 1955. No posto Gonçalves Dias Malcher revigorou a escola indígena, contratando a professora Maria Dolores Maia, que permaneceria com os Tenetehara, embora transferida em 1948 para o posto Araribóia, em Barra do Corda e depois para a aldeia Ipu, no município de Grajaú, até sua aposentadoria, em 1973 . Malcher não visitou as aldeias fluviais do rio Pindaré, mas fez uma viagem a cavalo, do posto Gonçalves Dias até a cidade de Grajaú, passando pelas aldeias localizadas na Estrada do Sertão, e daí até Barra do Corda, visitando alguns aldeias do rio Mearim. Seu relatório cita as aldeias a partir do posto indígena: Ilhinha, na beira do Pindaré, depois, já na Estrada do Sertão, Contra-Erva, Lagoa Comprida, Limão, Cigana, passando por diversas taperas (aldeias abandonadas) até chegar a Tauari Queimado, de onde seguiu para o Presídio ao redor da qual havia as aldeias de Cururu, São Félix, Canabrava, Vamos Ver, Capinão, Sambaíba e Saco, todas dos índios Tenetehara. Em seguida foi à cidade de Grajaú e de lá para Barra do Corda passando pelas aldeias Colônia e São Pedro. No seu relatório dirigido ao Diretor do SPI, José Maria de Paula, Malcher propõe a criação de um novo posto indígena para servir aos índios Timbira e Tenetehara do rio Grajaú, as aldeias tenetehara do alto Zutiua e Buriticupu, e os Krikati e Gaviões do cerrado grajauense. Em Grajaú Malcher iria criar a Sub-ajudância de Grajaú, que já tivera um representante na década de 1930, o qual havia sido demitido por Virgílio Bandeira “por fazer parte do esquema de corrupção”, segundo fora informado Malcher. Em Barra do Corda iria reforçar a Ajudância de Barra do Corda, além de estabelecer um posto indígena para os Tenetehara do alto Mearim, o qual foi localizado na aldeia São Pedro, com o nome de Tenente Manuel Rabelo e um para os índios Canela do cerrado barracordense, chamado posto indígena Ajuricaba, depois renomeado Capitão Uirá. Além disso, Malcher deixou instruções e planos para a delimitação de novas terras indígenas, como veremos no Capítulo X.

Em novembro de 1941 o posto Gonçalves Dias recebeu outra visita ilustre, deste vez de uma equipe de pesquisa vinda do Museu Nacional, chefiada pelo antropólogo Charles Wagley e com os estudantes Eduardo Galvão, Nelson Teixeira e Rubens Meanda, a qual permaneceu na região até março de 1942. Do posto indígena eles partiram para visitar diversas aldeias da Estrada do Sertão e do alto Pindaré. Em fevereiro de 1945, Eduardo Galvão retornou por quatro meses e complementou os dados dessa pesquisa, a qual foi publicada em inglês em 1949 e em português em 1961. O diário de campo de Galvão seria publicado postumamente em 1996. Esses trabalhos e outros artigos publicados separadamente contém os dados mais importantes sobre a cultura tenetehara até agora coletados e analisados. Minhas pesquisas realizadas na década de 1970 consubstanciam muitas das observações daqueles autores. Esses dados se encontram mais ou menos diluídos na elaboração do presente trabalho. Mais especificamente, os dados econômicos colhidos por Wagley e Galvão são apresentados e analisados nos capítulos XI, XII e XIII.

Quanto à população tenetehara, Wagley e Galvão, citando o censo de 1940 do SPI, estimaram que havia “mais de 2.000 Tenetehara”, assim discriminados: 350 a 400 nos rios Gurupi e Capim (este no Pará), de 900 a 1.000 no rio Pindaré e na Estrada do Sertão e os demais nas treze aldeias da região de Barra do Corda-Grajaú. (Na verdade, essa população devia chegar a 3.500, pois os Tenetehara da região de Barra do Corda-Grajaú chegavam a 1.200 e os do Zutiua e Buriticupu somavam quase 1.000.) Embora sem informações precisas sobre a população tenetehara do século passado, Wagley e Galvão sentiram que esta estava em curva descendente. A conclusão mais sombria desse trabalho foi a de que os Tenetehara estavam em franco processo de aculturação e assimilação, vivendo um intenso relacionamento com a sociedade regional em expansão e com a tendência para abandonar muitos dos seus costumes originais. Previram assim que eles se assimilariam na população cabocla maranhense “no espaço de uma geração ou pouco mais”.

Desde fevereiro de 1941 o novo chefe do posto Gonçalves Dias ficou sendo José Hélio Mendes Berniz, que lá ficaria até dezembro de 1947. No fim daquele ano Berniz foi denunciado por alguma improbidade administrativa e especificamente pelo uso de maconha, hábito comum aos Tenetehara e que também fazia parte dos costumes de muitos maranhenses sérios e pundonorosos. Certamente José Berniz não seria o único servidor do SPI a fazer uso do pytympiarahy, ou “fumo muito brabo”, como chamam os Tenetehara .

Em julho-agosto de 1951, Darcy Ribeiro esteve por quatro semanas no posto Gonçalves Dias, esperando a chegada de um grupo de índios Urubu-Ka’apor e o chefe do posto para o levar através da mata para as aldeias do rio Turiaçu, como parte da segunda etapa de sua pesquisa entre esses índios . Vale a pena notar que, em seu diário de campo, Ribeiro (1996: 299-333) analisou que os Tenetehara, ao contrário do que previa o livro de Wagley e Galvão, não lhe pareciam a ponto de deixar de ser índios, mesmo porque o preconceito contra índios e contra quem abandona a aldeia e passa a viver entre os civilizados continuava muito forte e desencorajador . Observou que diversos Tenetehara viviam junto aos civilizados, sempre em condições de inferioridade, e muitos nem faziam roças permanentes, vivendo da venda do coco babaçu. Estava se desenhando um período de anomia que iria durar até praticamente meados da década de 1970.

Deveras, como previam Wagley e Galvão, a década de 1950 foi terrível para os Tenetehara do Pindaré. Sua população decresceu velozmente por causa dos terríveis surtos de varíola, coqueluche e impaludismo que acometeram aquela região, provavelmente devido a novas cepas trazidas por lavradores nordestinos que se esparramavam pela Estrada do Sertão e pela beira do rio Pindaré. Pelos fins daquela década a economia tradicional de produtos extrativos do alto Pindaré entrava em colapso com a exaustão das copaibeiras, o desinteresse por resinas e a proibição de venda de peles silvestres. Assim, as aldeias do alto Pindaré foram esvaziadas e seus sobreviventes desceram para o posto Gonçalves Dias ou se deslocaram para a área do Buriticupu em demanda do posto Araribóia.

Esse processo ocorreu sem que a 3ª Inspetoria do Maranhão, a qual desde maio de 1948 e até maio de 1962, ficara nas mãos de um dedicado servidor, o advogado positivista amazonense, Dr. Sebastião Xerez, pudesse intervir adequadamente. O papel do Dr. Xerez será visto mais adiante na análise sobre os Tenetehara da região Grajaú-Barra do Corda, quando não porque de lá sobraram mais relatórios e correspondências que explicitam suas idéias e ações como inspetor. Em relação aos Tenetehara do Pindaré Xerez manteve uma relacionamento menos caloroso, talvez até menos dedicado e menos esperançoso. Ao ver as condições de existência do posto Gonçalves Dias, com mais de vinte funcionários civis mais preocupados em si próprios do que na sorte dos índios, e com uma população indígena desesperadamente ociosa, vivendo da quebra do coco babaçu e quase sem fazer roças de mandioca, Xerez pensou em desativar o posto e transferi-lo de volta para o rio Caru. Essa idéia nunca foi levada adiante, mas permaneceu como uma possibilidade e uma ameaça aos Tenetehara do baixo Pindaré até meados da década de 1970.

Na sua segunda visita ao posto Gonçalves Dias, em 1949, Xerez foi agredido verbal e fisicamente por alguns Tenetehara que foram insuflado por aqueles que Xerez e o inspetor anterior haviam demitido e pela indignação que sentiram com o fato de Xerez tentar impor uma política de ressarcimento dos brindes (machados, facões, enxadas, peças de chita, etc.) que o SPI doava aos índios. Xerez teve que correr e se refugiar numa sala do posto indígena, conforme relatou a Darcy Ribeiro (1996: 309), mas não guardou rancor dos índios.

Como consciencioso inspetor do SPI, servindo desde a década de 1930 em estados amazônicos, Xerez achava que os Tenetehara, especialmente os do Pindaré, estavam mal acostumados em receber tudo de graça, sem entender que teriam que retribuir de alguma forma. Desse jeito os índios jamais aprenderiam a ganhar responsabilidade e a tocar as suas vidas sem a tutela de um órgão indigenista. Na sua visão, uma das mais importantes tarefas de sua missão era equipar os postos indígenas com maquinário e técnicas que pudessem fortalecer as economias indígenas e ao mesmo tempo incentivar os índios a produzir excedentes que os permitissem tornar-se auto-suficientes. Porém a economia de excedentes lucrativos, no alto Pindaré, como veremos no Capítulo XII, estava presa à extração de óleos, resinas e peles silvestres, as quais com o passar dos anos entraram em depleção. No baixo Pindaré, nas aldeias perto do posto, o principal produto era o coco babaçu, mas que alcançava preços irrisórios. Os índios haviam se desacostumados a plantar grandes roças de mandioca para fazer farinha e vendê-la. Em 1960, um chefe do posto Gonçalves Dias iria sugerir que se instalasse uma serraria para fazer tábuas das madeiras nobres - cedro, em especial - que havia na área ao redor do posto, e requisitou de Xerez serras e serrotes adequados. Havia uma demanda enorme por madeira por causa da crescente cidade de Santa Inês e de dezenas de povoados. Mas em pouco tempo ficou tarde demais, pois logo o cedro e outras madeiras de lei foram derrubadas, poucas aproveitadas para venda, pela onda de imigrantes camponeses que iam devastando as matas ao longo do Pindaré até sua confluência com o Caru, terras que haviam sido reservadas aos Tenetehara.

Em fevereiro de 1953, a população tenetehara sob a jurisdição do posto Gonçalves Dias era de 563 (pouca mais da metade da década anterior), sendo 233 homens, 215 mulheres, 68 meninos (menores de 12 anos) e 47 meninas. Como se pode verificar a população infantil era muito pequena, do que se deduz estar havendo um alto índice de mortalidade infantil. Em dezembro somavam 584, tendo as mulheres aumentado para 220, os meninos para 72 e as meninas para 59, portanto com algum crescimento natural. Havia ainda na ocasião duas aldeias no alto Pindaré, Boa Vista, chefiada pelo cacique Maurício, e Espera Grande, sob a chefia de Antônio. Esses dois líderes vieram ao posto em março para negociar 11 latas de copaíba, 35 peles silvestres, 15 alqueires de farinha, 8 kg de tabaco, 15 kg de resina de jatobá e alguns “paneiros” de tapioca. A aldeia ao lado do posto chamava-se Kriviri, e havia ainda duas nas vizinhanças, Olho d´Água e Lago Gordo. Mais adiante, Faveira, perto de onde antes existira a velha aldeia Ilhinha, abrigava Camiranga, da Sapucaia, índio importante na década de 1940, que tinha tido cinco mulheres de uma vez e controlara o excedente produtivo de duas aldeias no alto Pindaré, descera para viver na área do posto, onde iria morrer. Na Estrada do Sertão, a partir da desembocadura do rio Zutiua, havia as aldeias Lagoa Comprida, Tarupau, Anajá e Bacabal, todas de pouco tamanho. O povoado de Santa Luzia ia crescendo e tomaria as terras dessas últimas aldeias.

Durante a primeira metade da década de 1950, o chefe do posto Gonçalves Dias foi Édson de Melo Sá, que iniciara-se no SPI como servente em São Luís. Já se percebe que era grande, e seria permanente, a carência de funcionários preparados, o que iria resultar na contratação de pessoas que tivessem algum traquejo com índios, que soubessem agradá-los e ao mesmo tempo dominá-los. Muito do pessoal que chegava à chefia de posto indígena começava nos escalões mais baixos, como servente, enfermeiro ou motorista. Durante o SPI exigia-se que soubessem escrever com alguma clareza, mas no tempo da FUNAI essa exigência caiu ainda mais. O posto Gonçalves Dias, pelas dificuldades cada vez maiores que iria passar nos anos seguintes, iria ter variados chefes, só os experimentados agüentando passar tempo mais prolongado. Em 1958, o novo chefe era Júlio Alves Tavares, que havia sido enfermeiro em Barra do Corda, e que iria trilhar uma carreira sólida, inclusive como chefe da Ajudância de Barra do Corda, durante vários e salteados anos na década de 1960, e até como inspetor substituto, por alguns meses em 1964 e 1965.

Em março de 1960 Júlio Alves Tavares escreveu um relatório no qual concentrou sua atenção na descrição detalhada, inclusive com fotos, da infra-estrutura material do posto Gonçalves Dias, construções, currais, pastos, gado, e pouquíssimo sobre os índios. A velha escola do posto estava desativada por falta de professores, fáceis para contratar e difíceis para permanecer no cargo. A focalização na infra-estrutura se devia tanto à visão que Júlio Alves Tavares devia ter do seu trabalho, que não era de sair fora dos limites burocráticos, quanto à própria concepção do Dr. Xerez, que àquela altura se preocupava em manter o posto com condições de funcionamento diante das dificuldades que vinha sentindo em demarcar alguma área de terras para os Tenetehara. Essas terras, cujos planos de demarcação vinham desde 1941, estavam já cercadas de camponeses, uns humildes, outros gananciosos, todos mal suportando a idéia de que os índios tinham prioridade sobre eles. Nos anos seguintes iria se intensificar o flagelo das invasões por imigrantes atraídos pelo desenvolvimento que a SUDENE começava a realizar na região do Pindaré e para o oeste, com um grandioso projeto de povoamento e colonização e a construção da BR-262, ligando São Luís a Belém, e que, naquele trecho, saía da cidade de Santa Inês e atravessava o rio Pindaré precisamente por dentro da terra indígena, deixando-a vulnerável à entrada de passantes a pé, montados, e mais tarde de automóveis.

Em 1960, umas poucas famílias dos índios Timbira do baixo Mearim, (os antigos Pobzés e Crenzés) pediram ajuda ao SPI, e Xerez, sem condições de criar um posto para eles e demarcar terras, estando tão próximo da crescente cidade de Bacabal, achou por bem instalá-los nas terras do posto Gonçalves Dias. Os desolados Timbira vieram e passaram a conviver com os Tenetehara, quase sempre em desconfiança mútua e às vezes com alguma agressividade. Alguns Timbira até que tentaram situar uma aldeia no médio Pindaré, no lugar Mineiro Grande, mas a chegada de tantos invasores os fez recuar para as terras ao redor do posto. Todavia, nenhum desentendimento atávico impediu que, no processo de expulsão de invasores, os Timbira fossem de crucial importância, auxiliando os Tenetehara de todos os modos possíveis, e em alguns casos com riscos de vida.

Em janeiro de 1962 Hugo Ferreira Lima, outro enfermeiro da região de Barra do Corda, veio chefiar o posto Gonçalves Dias, lá ficando até junho de 1964. Sua primeira providência foi subir o rio Pindaré para visitar os Tenetehara que estavam por lá. Já eram pouquíssimos, e ele pôde apenas constatar a chegada maciça de imigrantes e a exploração que os índios estavam sofrendo. Sua principal preocupação passou a ser a retirada ou expulsão dos invasores da área indígena projetada por Xerez. Em junho de 1962 ele próprio, com a ajuda dos Tenetehara, conseguiu expulsar treze homens que estavam retirando madeira. Mas as invasões vinham de todos os lados: lavradores, quebradores de coco babaçu, pescadores, birosqueiros, madeireiros derrubando as últimas árvores de lei. Aliás, o próprio Hugo Ferreira Lima deu licença, em outubro de 1962, para os índios venderem 78 toras de pau d´arco e 85 toras de cedro (a Cr$1.000,00 cada uma). Hugo apelou insistentemente para todos as autoridades possíveis: o major-chefe de polícia de Pindaré-mirim, por exemplo, que respondeu que só retiraria invasores depois que a área fosse demarcada; o sargento comandante do posto policial de Santa Inês, sucessivamente os delegados das polícias de Santa Inês, Pindaré-mirim, Monção e Bom Jardim, os prefeitos dessas cidades, um delegado especial em Pindaré-mirim, o capitão da Polícia Militar Estadual, o Dr. Geraldo, coordenador da SUDENE local, encarregado do Plano de Povoamento do Maranhão, sem contar os constantes telegramas ao inspetor do SPI em São Luís. Este, à época Olímpio Cruz, chegou a acionar a procuradoria geral da República, que requereu providência ao juiz da cidade de Penalva, que se deslocou até a área do posto em outubro de 1963 . Tudo em vão, pois nada foi conseguido nesses anos e até meados de 1975. Entretanto, por tanta insistência, uma faixa de terras com pouco mais de 15.000 hectares foi sendo resguardada, mesmo com invasores, e esta é que viria a ser demarcada.

Entre 1963 e 1965, um missionário inglês ligado ao Summer Institute of Linguistics (SIL), David Bendor-Samuel, esteve nessa área a pesquisar a língua tenetehara com o intuito de aprendê-la e traduzir o Evangelho. Também visitou os Tenetehara da região de Grajaú-Barra do Corda. Na sua visão os Tenetehara estavam passando por um período extremamente desagregador. Testemunhou o arrendamento de lotes de terra, em geral capoeiras velhas, a imigrantes para fazer roças de mandioca e arroz, e de babaçuais para coletar e quebrar coco, sendo o pagamento realizado por porcentagem da colheita e do valor estipulado da quebra do coco, pago aos chefes do posto, às vezes a alguns líderes Tenetehara ou Timbira. Após aprender a língua tenetehara, o missionário persistiu na doutrinação religiosa e até conseguiu converter duas ou três famílias de Tenetehara à sua religião . Pelo menos é como crente que a família do velho Manuel Viana passou a se identificar, procurando não beber, não freqüentar as festas sertanejas, nem fumar tabaco e maconha. Em geral, tal disciplinamento social tem sido difícil de seguir e a maioria dos conversos, aqui, como em outras culturas indígenas, e como desde sempre, termina abandonando a nova crença após a partida do pastor de sua área.

Em agosto de 1963, a população do posto Gonçalves Dias estava reduzida a 252 Tenetehara e 22 Timbira, menos da metade da população de uma década atrás, e um quarto do início da década de 1940. Não havia mais aldeias na Estrada do Sertão, e no alto Pindaré sobreviviam não mais que umas poucas famílias tenetehara, tendo suas terras sido tomadas por roças, centros agrícolas, povoados e fazendas obtidas por meio de grilagem. Em ambas as margens do rio Pindaré, até a confluência do rio Caru, iam surgindo pequenos povoados com casas de pau-a-pique, cobertas de folha de babaçu, encarando o rio, por onde vinham as lanchas a motor deixando mercadorias e levando arroz, o principal item de venda desses pobres lavradores. De cada povoado partiam caminhos para dentro onde novos imigrantes derrubavam a mata para fazer roças e se agregavam em novos pequenos povoados. As terras pareciam não ter dono e as famílias eram atraídas pela esperança de tomar algum pedaço para si.

Os Tenetehara agora se concentravam nas aldeias Kriviri, Olho d´Água e Faveira, esta última já quase desabitada, pois estava perto do porto das lanchas que demandavam o rio Pindaré. A queda populacional se devia não só a mortes naturais de adultos (que continuavam a ocorrer, conforme os relatos dos chefes de posto) , e certamente a um alto índice de mortalidade infantil, mas à intensificação do processo de assimilação de indivíduos tenetehara pelo sistema sociocultural dos novos imigrantes, causada em parte pelo sentimento de anomia e desesperança dos Tenetehara em sua própria cultura. O SPI era incapaz de barrar esse processo, que parecia a todos inexorável.

Os anos finais do SPI, no Pindaré, foram marcados por esse esmorecimento tanto dos Tenetehara quanto dos seus funcionários. Parecia que nada podia ser feito para contornar a situação de extrema gravidade pela qual passavam os índios e o velho posto. Um breve momento de reação aconteceu com a reativação da velha escola indígena José de Anchieta, a partir de outubro de 1964, com a ajuda dada pela SUDENE, que também ocasionalmente ofertava bens de consumo aos índios. Porém, naquele mês o próprio representante da SUDENE foi acusado de malversação e afastado da região. Seu substituto não se interessou por índios. Os últimos chefes do posto Gonçalves Dias foram Édson de Sá Melo (jul/1964 a dez/1965), Manuel Pereira Lima (jan/1966 a out/1966), e Bento Vieira, mais um enfermeiro de Barra do Corda (dez/1966 a jan/1968). Bento Vieira iria passar o posto para o primeiro chefe nomeado pela FUNAI, o tenente Domingos Justino Novaes, que conheceremos no próximo capítulo. Édson Sá e Bento Vieira voltariam a chefiar o posto Gonçalves Dias em anos variados, bem como um outro enfermeiro vindo de Barra do Corda, Virgílio Galvão Sobrinho, o que prova que eles eram entendidos no assunto de cuidar de índios.

A década de 1960 foi péssima para os Tenetehara sob todos os pontos de vista, e a lembrança que guardam desse período é das piores possíveis. A tensão com os lavradores imigrantes era terrível e sentiam-se abandonados pelos chefes de posto, a quem acusam de embolsar os dinheiros dos arrendamentos de terrenos para roças e dos babaçuais. É bem possível que alguns desses chefes de posto tenham embolsado rendas ou até compartilhado delas com alguns índios, mas não da forma sistemática que iria ocorrer logo com a mudança para a FUNAI.

A população dos Tenetehara estabilizara no patamar do início da década, oscilando em torno de 250 pessoas. Os Timbira se sustentavam em duas dezenas em função dos casamentos com civilizados e dos nascimentos de mestiços. Os Tenetehara continuavam a viver perto do posto, na aldeia Kriviri, no Olho d´Água e em duas ou três moradas (tekohaw) perto da rodovia, já com vistas a um melhor acesso às cidades de Santa Inês e Bom Jardim. Quase todos subsistiam pela venda do coco babaçu, do arrendamento de babaçuais e lagoas pesqueiras, uns poucos fazendo anualmente uma rocinha de mandioca e caçando um resto de caça que ainda sobrava nas pequenas bolas de mata. Alguns passaram a beber com avidez e diversos morreram atropelados quando voltavam das cidades ou das biroscas que vendiam cachaça. Um ou outro rapaz foi servir ao Exército, mas já ninguém se passava para o lado dos civilizados, pois a intensidade do relacionamento acirrara as divergências socioeconômicas e as diferenças étnicas. O gado vacuum que havia no posto, com currais e pastagens, experimento de assistência econômica aos Tenetehara, o qual em certos períodos chegara a mais de 200 cabeças, se tornara um dos prêmios pecuniários para os encarregados do posto, ou para o seu vaqueiro oficial, ou ainda para algum inspetor mais ousado, pois, em 19 de abril de 1965 o inspetor José Fernando Cruz passou recibo de Cr$ 2.020.000,00 pela venda de 28 reses do posto. Em janeiro de 1968 havia 68 rezes.

Essa situação, aparentemente sem saída positiva, iria se prolongar pelos anos seguintes, já com a FUNAI. Cogitou-se mais seriamente em extinguir o posto, entregar a área ao estado e transferir os índios para a área entre o Caru e o Pindaré que estava em melhores condições de ser preservada. Porém a reversão na curva demográfica dos Tenetehara a partir dos primeiros anos da década de 1970 e a sua insistência em ficar onde estavam iriam forçar a FUNAI a encontrar recursos humanos e jurídicos para demarcar a Terra Indígena Pindaré, em 1977, trazendo novas perspectivas de continuidade étnica para os Tenetehara dessa área e do alto Pindaré, bem como alguns problemas novos, como veremos no próximo capítulo.

2. A Vigilância, depois Ajudância de Barra do Corda

Vale lembrar que, por ocasião da instalação da 3ª Inspetoria do Maranhão, em São Luís, o político e jornalista Frederico Figueira fizera um discurso em que torcia pela arregimentação racional da mão-de-obra indígena - qual colonizador atávico do século XVII - mas também augurava bons tempos para o SPI. Naquele ano de 1911 ele iria fazer mais discursos sobre a questão indígena, os quais seriam publicados no jornal de Barra do Corda, “O Norte”. Num desses discursos Figueira atribuiu a eclosão da Rebelião do Alto Alegre não aos insuflamentos da sociedade local, nem à selvageria indígena, mas ao “caráter altivo dos índios à procura da liberdade” . Não resta dúvidas de que era um discurso de caráter positivista e bem sintonizado com a visão filosófica do SPI, algo inesperado para uma sociedade que dez anos antes havia sofrido uma perda de duzentas pessoas.

Contudo, só em dezembro de 1913 é que o inspetor Pedro Dantas iria nomear alguém para instalar uma sub-inspetoria ou vigilância, em Barra do Corda. Este alguém seria ninguém menos que o Coronel Pedro José Pinto que, doze anos antes, havia sido o militar que comandara as tropas que desbarataram os Tenetehara do Alto Alegre, perseguindo-os em outras aldeias e refúgios até pôr a situação sob controle. Não há indícios de que os Tenetehara guardassem algum ódio especial ao Coronel Pinto, mas o que motivara essa nomeação era a necessidade do SPI tomar pé da situação dos índios Canela (Kenkateye) do Ribeirão da Chinela ou das Cacimbas, que haviam sofrido um covarde massacre em 25 de outubro daquele ano perpetrado por capangas da família Arruda. O massacre ocorreu depois que os índios foram atraídos para uma fazenda, embriagados com cachaça e amarrados, sendo mortos por tiros de rifle e cutiladas de facão. Segundo os jornais da época seriam mais de 30 índios assassinados. Nimuendaju (1946: 32), com base nas conversas que teve com alguns sobreviventes, que perderam a autonomia de sua aldeia e passaram a viver entre os Canela Apanyekra e os Krahô, calculou o número de mortos em mais de 50.

Assim, é de supor que o Coronel Pinto teria iniciado os trabalhos de instalação da Vigilância de Barra do Corda, inclusive fazendo as primeiras contratações na região. Certamente abriu um processo contra os assassinos dos Canela, o qual, entretanto, estava arquivado alguns anos mais tarde, ninguém tendo sofrido sanções . Não há notícias a mais sobre a atuação do Coronel Pinto na região, mas os índios velhos guardam memória de sua passagem como sub-inspetor. Naqueles anos quando iam a Barra do Corda os Tenetehara se abrigavam debaixo da ponte, em condições de miséria, e parece que o Coronel Pinto proibiu que isso continuasse, o que não deu resultado pois os índios continuaram nessa condição de extrema humildade até a chegada de Sebastião Xerez. Barra do Corda, apesar do espírito indigenista de um Frederico Figueira e da ilustração de outros intelectuais locais, como Olímpio Fialho , mantinha vivas as lembranças da Rebelião do Alto Alegre e sentia ódio e desprezo, mas também medo, dos Tenetehara, que comercializavam seus produtos agrícolas com mascates, nas fazendas, nos povoados e na cidade. Já os índios Canela, tanto os Ramkokamekra da aldeia do Ponto, como os Apanyekra, da aldeia Porquinhos, e ainda os Kenkateye, da aldeia Cacimbas, pareciam a todos mais submissos e tratáveis, embora dessem muito trabalho por freqüentemente matarem gado que perambulavam em suas terras. Umas poucas pessoas, em especial das famílias Uchoa, Miranda e Martins, as quais, desde o Império tiveram posições de mando nas diretorias parciais, se arvoravam “conhecedores dos índios”, e se relacionavam diretamente com eles, comprando seus produtos silvestres e usando de sua mão-de-obra para abrir roças ou retirar madeira.

Quando o SPI procurou gente disposta a trabalhar em prol dos índios foi entre estes membros da classe dominante barracordense que fez seu aliciamento. O primeiro deles parece ter sido Marcelino Miranda (neto do desbravador Melo Uchoa), provavelmente por indicação de Frederico Figueira. Marcelino iria comandar a Vigilância entre 1917 e 1922, abrindo mão para se candidatar e ser eleito deputado estadual, e deixando seu filho Raimundo Miranda como chefe da Vigilância até 1944. Marcelino Miranda, provavelmente junto com Frederico Figueira, é que foi responsável pela negociação que resultou no decreto estadual que criou as primeiras áreas indígenas no Maranhão, uma para os Tenetehara e outra para os Canela, em 1923, como veremos detalhadamente no Capítulo X. Durante mais de vinte anos foi Marcelino quem impôs as diretrizes de relacionamento com os índios e com a inspetoria do SPI. Ele mantinha há muitos anos interesses econômicos com os Canela e Tenetehara e por vezes viria a ser acusado de exploração da mão-de-obra indígena ou de vender produtos aos índios por preços altos demais. Esta última acusação lhe foi feita em relatório do Sub-inspetor Raimundo Nonato Maia, quando de suas duas visitas a Barra do Corda, em 1926 e 1928, para inspecionar a demarcação das terras indígenas . Um intelectual local, com graças de jornalista e poeta, que em 1938 abraçara o Integralismo, Olímpio Cruz, iria trabalhar, a partir de 1942, como chefe do posto Capitão Uirá, dos índios Canela. Em 1948 foi nomeado auxiliar de sertanista e passou a chefiar a Ajudância de Barra do Corda até 1962, quando assumiu a Inspetoria em São Luís até dezembro de 1963, voltando à Ajudância até sua aposentadoria em fins de 1964 . Nos anos seguintes muita gente de Barra do Corda iria trabalhar nas hostes do SPI, muitos por interesse exclusivamente de garantia de emprego público federal, coisa rara e preciosa na região, alguns com maior dedicação e uns poucos ficando íntimo dos índios até por casamento.

Na década de 1920 o esforço maior do SPI em Barra do Corda foi com o processo de demarcação da área decretada pelo governo do estado aos Tenetehara. Como algumas aldeias se recusaram a deixar suas terras para se transferir para dentro da área delimitada, ocorreram diversos casos de conflito entre os índios e lavradores. Para isso a presença da Vigilância era de grande importância, dando tranqüilidade aos índios de que teriam defensores, se eles tivessem razão. Fróes de Abreu, que esteve em diversas aldeias tenetehara e canela em 1928, escrevendo sobre a cultura e a vida daqueles índios, constata o apoio que eles podiam ter a esse respeito. Embora explorados no que produziam e vistos como selvagens, os índios eram defendidos pelo chefe Raimundo Miranda quando algum brasileiro lhe fazia algum mal ou o acusava de algum malfeito. Os índios em geral tratavam o chefe com respeito e submissão, mas já então alguns ousavam se aborrecer e discutir com ele. O relatório de visita do sub-inspetor Raimundo Nonato Maia discorre sobre um incidente em que o próprio chefe Raimundo Miranda, ao chamar o índio Tenetehara Herculano Ribeiro de patife por não pagar uma dívida contraída com seu pai, este retorquira chamando-o de ladrão. Sem dúvida, os Tenetehara, embora fossem considerados como “trabalhadores e capazes de, em pouco tempo, viverem independentes com conforto relativo”, conforme o relato de Nonato Maia, não eram osso mole de roer.

A década de 1930 vai passar sem quaisquer acontecimentos ou eventos de significação entre os Tenetehara da região Grajaú-Barra do Corda. As dificuldades políticas, administrativas e financeiras do SPI o deixaram incapacitado para exercer mais atividades, ou pelo menos não há documento dessa época. Raimundo Miranda exerce inconteste o papel de chefe da Vigilância, num tempo de pouco desenvolvimento econômico e movimentação demográfica na região. A Vigilância de Barra do Corda coordenava as atividades de vários funcionários e trabalhadores braçais que viviam em algumas aldeias indígenas. Na aldeia São Pedro, localizada na beira do rio Mearim, havia uma escola indígena, criada na década de 1920, cujo professor era um Tenetehara, o professor Felipe Boni. Em seu crédito está a alfabetização de mais de uma centena de Tenetehara, até sua morte, em 1948, quando já vivia na aldeia Geralda, localizada no rio Grajaú. A poucos quilômetros a montante estava a aldeia Colônia, velha sede da antiga Colônia Dous Braços, que era representada pelo cacique Silvano, que passou a ser funcionário braçal do SPI em meados da década de 1930, efetivado a partir de 1941. As demais aldeias tenetehara eram assistidas a partir dessas duas, ou diretamente de Barra do Corda. De vez em quando estouravam surtos de varíola, sarampo, coqueluche e impaludismo, os flagelos dos índios naquela época. A Vigilância pouco podia fazer e a população tenetehara crescia muito lentamente. Já os Canela, que foram visitados por Curt Nimuendaju por três espaçados períodos entre 1929 e 1937 continuavam a decrescer em população (Nimuendaju 1946).

A partir de 1940, com as mudanças gerais no SPI, a Vigilância de Barra do Corda passou a funcionar como uma Ajudância, com poderes de coordenação dos diversos postos indígenas criados em todo o centro-sul maranhense. Logo de início três postos postos indígenas foram criados, um para assistir aos índios Canela, divididos entre as etnias Ramkokamekra e Apanyekra, um para os Tenetehara do município de Barra do Corda, e um para os Tenetehara, Timbira, Gaviões e Krikati do município de Grajaú. Sendo imensa a área do município de Grajaú foi instituída uma sub-ajudância. Todas essas ações foram realizadas pelo inspetor José Maria da Gama Malcher, quando de sua passagem por Grajaú e Barra do Corda, vindo de sua viagem de inspeção a partir do posto Gonçalves Dias, entre fevereiro e maio de 1941.

Em relação ao seu compromisso com a demarcação de terras indígenas, a reinstalação da 3ª Inspetoria Regional do SPI reorganizou o quadro de funcionários para contar com uma turma de demarcação com o propósito de concluir as demarcações iniciadas em anos anteriores e criar algumas outras terras para os Tenetehara. Malcher havia tomado consciência da amplitude do problema indígena no Maranhão e dos territórios que deveriam ser reservadas aos índios. Esses dados serão detalhados no Capítulo X.

3. O Posto Capitão Uirá

O posto indígena criado para os Canela, chamado inicialmente Ajuricaba, depois Capitão Uirá, em homenagem ao Urubu-Ka´apor Uirá, foi instalado na velha aldeia do Ponto, dos Ramkokamekra, e funcionou pelos trinta anos seguintes paralelo ao posto dos Tenetehara. Seu primeiro chefe foi um jovem barracordense chamado Orículo Castelo Branco que, ao tentar defender os Canela das invasões de gado de fazendeiros locais, foi acusado de insuflador e teve que ser transferido para outra inspetoria indígena. Esse acontecimento teve a intervenção inclusive do governador-interventor do Maranhão, Paulo Ramos, e do ministro de Agricultura, que tentavam responder aos reclamos dos fazendeiros.

O segundo chefe do posto foi Olímpio Cruz que lá ficou até 1948, quando foi convidado por Sebastião Xerez para dirigir a Ajudância de Barra do Corda. Na década de 1950 o posto foi chefiado por diversos encarregados de menor expressão, sempre sob a supervisão da Ajudância. A tensão com os fazendeiros locais teve um desfecho trágico em agosto de 1963, quando a aldeia do Ponto foi atacada por um bando de mais de 120 homens que invadiram o território canela a mando de fazendeiros locais . O ataque à aldeia principal só não resultou em muitas mortes por causa da destreza militar dos guerreiros Canela, liderados por Raimundo Roberto, que conseguiu ganhar tempo para retirar mulheres e crianças ao atrair os agressores para áreas de espinhais e carrascais. Ao final de alguns dias, seis índios foram mortos, quase todos velhos que ficaram na aldeia, um deles desafiando os atacantes de peito aberto no pátio da aldeia. Os Canela fugiram de seu território e foram se abrigar nas terras dos Tenetehara, onde ficaram desconfortados por viverem em mata de transição até 1966, quando voltaram e reconstituíram sua velha aldeia.

Naquela ocasião, era inspetor do SPI o barracordense Olímpio Cruz, que reagiu com protestos e pedidos de ajuda aos governos federal e estadual, mas não conseguiu enquadrar os agressores. Cruz se sentiu arrasado e desmoralizado e deixou a chefia da inspetoria, voltando à Ajudância de Barra do Corda. Em 1966 o então diretor do SPI Coronel Hamilton de Oliveira Castro propôs que as terras dos Canela fossem entregues ao INCRA para distribuição entre lavradores brasileiros, o que demonstra a falta de senso e lealdade da direção do SPI após do golpe de 1964. Entretanto, o que ocorreu foi o contrário: uma rápida movimentação no sentido de garantir aquelas terras, acrescidas em muito mais do que havia sido doado em 1923, para os Canela. Com efeito, a T.I. Canela tornou-se a primeira terra indígena no Maranhão a ser demarcada, depois homologada, registrada em cartório municipal e tombada pelo Serviço de Patrimônio da União, com uma área de 120.000 hectares, ainda em 1973.

3. O Posto Indígena Tenente Manuel Rabelo, depois Guajajara

Em abril de 1941, o inspetor José Maria da Gama Malcher criou, na aldeia São Pedro, um segundo posto indígena para os Tenetehara o qual recebeu o nome de Tenente Manuel Rabelo. No trajeto entre Grajaú e Barra do Corda, Malcher viera pela velha estrada da Sibéria, passando pelas aldeias de São Pedro e Colônia. Não se sabe porque preteriu a Colônia para ser sede do novo posto, mas São Pedro já era uma aldeia importante, tendo um professor tenetehara, Felipe Boni, bastante conceituado entre os índios e funcionários do SPI, desde o início da década de 1920. Situada na beira do rio Mearim, São Pedro era alcansável de Barra do Corda por via fluvial, em pequenos batelões, e por uma pequena estrada carroçável e cavalgada por tropas de burros. Assim, os servidores da Ajudância poderiam com alguma presteza se deslocar para o posto; e os Tenetehara dessa aldeia, bem como das outras suas vizinhas, poderiam lá concentrar seus produtos e transportá-los para vender em Barra do Corda. Fróes de Abreu havia visitado a aldeia São Pedro em 1928, bem como algumas mais das circunvizinhanças, e diversas fotos de seus habitantes podem ser encontradas em seu livro. Nessa ocasião já alguns poucos Tenetehara sabiam ler e escrever, inclusive o capitão da aldeia Colônia, Francisco Lopes, que mais tarde se mudaria para a aldeia da Pedra e depois iria fundar a aldeia do Ipu, em 1948.

O primeiro chefe do posto foi Sylio Ribeiro Manhães Delgado, que parecia ser um homem inapropriado para a tarefa, pois logo-logo entraria em conflito com o professor Felipe Boni. Este apresentou um relatório em que acusa Sylio de bater nas crianças, ser grosseiro e repreender os índios de público, o que consiste em ofensa inaceitável. Já Sylio acusou Boni de castigar as crianças na escola, inclusive a sua. Em nenhum momento Felipe Boni é acusado de ser mau professor ou relapso na escola. Ao contrário, tanto Fróes de Abreu quanto o próprio Malcher se admiraram da dedicação de Boni ao magistério e seu espírito nacionalista. Em relatório de setembro de 1941 o chefe da Ajudância Raimundo Miranda sugere que melhor seria retirar Sylio, e colocá-lo como escriturário, o que eventualmente foi feito mesmo porque Sylio adoeceu em seguida. Por sua vez, Felipe Boni foi transferido para o posto Araribóia, criado em fins daquele ano na beira do rio Grajaú, onde ficaria até sua morte em 1947. Um inesperado distúrbio ocorreu naqueles primeiros meses de instalação do posto Tenente Manuel Rabelo quando o armazém de guardar material do SPI foi saqueado por um grupo de dezesseis índios liderado pelo Tenetehara Gregório Carvalho, reconhecido como índio civilizado inclusive por ter se casado com uma civilizada negra, uma karaikuzà. O incidente foi contornado pelo inspetor Raimundo Miranda e Gregório continuou a viver na área indígena, mas afastado das aldeias, nas terras próximas da antiga missão do Alto Alegre, se relacionando com as poucas famílias de lavradores que lá viviam.

O chefe de posto seguinte foi Mariano Melo Sá, que ficaria até 1947, não havendo nenhuma documentação a mais a seu respeito. Nos primeiros meses de 1948 o novo chefe seria José Mendes Berniz, que saíra do posto Gonçalves Dias e estava sendo processado, junto com Edson de Melo Sá e José Teodoro Mendes, por alguma malfeito administrativo e pelo uso de maconha. O chefe da Ajudância à época era Euclides Neiva, que viera substituir Raimundo Miranda, e abrira esses processos junto com o Inspetor da 3ª Inspetoria Otto Ernesto Mohn. A própria professora Maria Dolores Maia, que fora transferida para o posto Tenente Manuel Rabelo, parecia ter ficado de mal com os Tenetehara de lá e terminaria sendo alocada no posto Araribóia e daí para a aldeia Ipu, onde seria instalado uma escola. Todo essa situação só se acalmaria com a chegada e assunção do cargo de inspetor de Sebastião Xerez.

Em 1948 o posto passou a ser chefiado por José Aucê, um mestiço de índio do Amazonas que Xerez trouxera como auxiliar. José Aucê ficaria como chefe do posto Tenente Manuel Rabelo até 1957 ou 1958. Sua mulher, Maria Rita Aucê, também foi contratada como professora da escola do posto. O casal deixaria boas lembranças entre os Tenetehara da região, tendo se mudado para Brasília em meados da década de 1960.

Até o final do SPI, o posto Tenente Manuel Rabelo iria ser um lugar tranqüilo, mas não teria mais a mesma importância que nas décadas anteriores pois sua abrangência seria quebrada com a nomeação de funcionários para se estabelecer na aldeia Sardinha, na beira do rio Corda, e na Vila Uchoa, ou aldeia Canabrava. Esta última se tornaria um posto indígena em outubro de 1964 com o nome Brigadeiro Eduardo Gomes, enquanto Sardinha seria posto só em fins da década de 1980.

4. O Posto Indígena Araribóia e a Sub-ajudância de Grajaú

Entre o baixo Pindaré, onde estava o posto Gonçalves Dias e a cidade de Grajaú, cavalgando pela Estrada do Sertão, Malcher se espantou com o tamanho dessa região sem nenhuma supervisão do SPI, com uma quantidade expressiva de aldeias tenetehara, timbira, gaviões e krikati desassistidas e sofrendo a exploração de tropeiros, vaqueiros e fazendeiros de todos os quilates. Até então esses índios tinham sido assistidos com raridade pela Ajudância de Barra do Corda, que ficava distante demais. Fazia-se necessário a criação de um posto e, ao mesmo tempo, de alguma forma de representação do SPI na cidade de Grajaú. Em sua passagem pela cidade Malcher travou conhecimento com o promotor local José Gonçalves e o convidou para chefiar a Sub-ajudância que iria criar em seguida. Segundo os Tenetehara, este servidor do SPI, conhecido como Zeca Gonçalo, foi quem conseguiu dar um final ao serviço de canoas que subiam e desciam o rio Grajaú e cujos remeiros e vareiros eram quase exclusivamente índios Tenetehara. Uma infinidade de índios teriam morrido na “corrida de canoas” e muitos ficaram permanentemente escarificados pela pressão que as varas exerciam sobre os músculos do peito. Sob essa sub-ajudância ficaria o posto a ser criado bem como as aldeias tenetehara que se situavam entre o rio Mearim e seu afluente o riacho Enjeitado, cuja aldeia principal era Pedra, localizada no interior dessa área. Mais tarde, as aldeias de Ipu e Bacurizinho iriam se realçar entre as demais.

Zeca Gonçalo permaneceu como sub-ajudante por alguns anos, talvez cinco ou seis, mas não deixou documentos sobre sua atuação. A partir de 1950 a Sub-ajudância de Grajaú passou a ser chamada de Delegacia e ganhou destaque pela chefia do grajauense Raimundo Vianna, de família de modestos fazendeiros, que aí permaneceria até 1958, mantendo influência econômica sobre os índios até 1965 e exercendo alguma influência difusa na região até 1977. Nesses anos Vianna iria trocar uma minuciosa correspondência com Sebastião Xerez, deixando um valioso acervo sobre as relações do SPI para com os índios, boa parte do qual foi utilizado na análise econômica inclusa no Capítulo XI.

A escolha do local de instalação do posto indígena Araribóia foi questão de disputa entre Malcher e o agente sertanista José Olímpio, que ele enviara em agosto de 1941 para realizar a tarefa de escolha e instalação. Malcher queria que o novo posto fosse localizado na aldeia Tauari Queimado, a qual, após agregar os habitantes de diversas aldeias como Genipapo, Queimadas, e Pariranaua, estava com quase 400 habitantes (sic!). Tauari Queimado estava na Estrada do Sertão, de onde se podia alcançar as aldeias tenetehara e as dos Gaviões e Krikati, e a umas duas ou três léguas do rio Grajaú. Entretanto, José Olímpio, depois de passar por Tauari Queimado e de lá se deslocar até o rio Grajaú e contatar os Timbira Krepumkateyé, terminou escolhendo o local conhecido como Geralda para instalar o posto, argumentando em carta com Malcher pela maior comodidade e rapidez de comunicação. Ademais podia ajudar aos Tenetehara que se localizavam no baixo rio Grajaú. Malcher ainda duvidou e enviou o agente Orículo Castelo Branco para verificar esse local, mas Orículo desistiu no meio da viagem e voltou a Barra do Corda sem uma posição a respeito da localização. Enfim, o posto foi criado em outubro de 1941, ganhando o nome de Araribóia. Foi uma escolha absolutamente desastrosa.

O posto Araribóia era alcançável pelas canoas que subiam e desciam o rio Grajaú. A cavalo ficava a uma distância de umas doze léguas da cidade de Grajaú e umas vinte de Barra do Corda. Perto do local escolhido havia duas pequenas aldeias tenetehara, restos das aldeias bem maiores que compreendiam a antiga diretoria parcial da Chapada, com mais de 600 Tenetehara, por volta de 1881. Em 1924, quando Emil Snethlage visitara as aldeias de Oratório e Catingueiro, os Tenetehara somavam mais de 200, mas a partir de então foram sendo dizimadas pelas doenças e pelo trabalho no serviço de canoas. Havia também nas vizinhanças as duas últimas aldeias dos Timbira Krepumkateye do médio Grajaú, que, ao serem reunidas numa só somavam cerca de 190 pessoas . Os dois principais capitães eram o Major Clementino e Balbino Taropá. José Olímpio dá notícia de que havia outra aldeia timbira, chamada Mangueira, no distrito de Bacabal, cujos habitantes jamais seriam assistidos pelo posto. (Serão seus sobreviventes que irão morar no posto Gonçalves Dias em 1960.) Assim, Timbira e Tenetehara foram convidados a viver no posto, onde foram instaladas benfeitorias de produção agrícola como uma casa de farinha e máquinas para moer cana-de-açúcar, bem como uma escola para as crianças, cuja professora veio a ser dona Maria Dolores Maia, a professora que trabalhara no posto Gonçalves Dias. Na instalação do posto, José Olímpio, que ficou como seu encarregado até 1946 ou 1947, foi auxiliado pelo professor José Rego, que deixou uma pequena história dos índios, com um pequeno vocabulário da língua krepumkateyé. José Rego iria trabalhar na sede da Inspetoria naqueles anos até fins da década de 1950.

A insalubridade do local Geralda, infestado de mosquitos e sujeito a muitas doenças, especialmente malária, coqueluche e sarampo, iria fazer terrível cobro à população indígena. Logo morreriam o Major Clementino e Balbino Taropá e nos anos seguintes quase uma centena e meia de seus compatriotas. Num relatório escrito por Olímpio Cruz, em agosto de 1947, consta que restavam apenas 30 Krepumkateye, sendo apenas quatro homens adultos para vinte mulheres, entre eles o capitão Francisco Tonakam. A sífilis, cuja contaminação se dera pelo contato sexual com os barqueiros que passavam nas canoas, estava alastrada entre todos, inclusive tendo feito diversos meninos quase cegos. Com isso, como se já tivesse sugado o que de bom havia, o posto passou a ser visto como inviável, e em 1948 foi desativado, sendo seu pessoal e maquinário transferido para outro local com mais densidade indígena.

A aldeia da Geralda, que servira de sede ao posto, ficou durante muitos anos sob nenhuma assistência oficial. Os Tenetehara quase todos se mudaram para as aldeias do rio Zutiua, enquanto as mulheres Krepumkateye tiveram que se casar com os campônios locais e passaram a viver quase como camponeses. Parecia que a assimilação à população local e a perda das terras indígenas seria o destino final desses Timbira. Realmente, nos anos seguintes instaurou-se um processo muito intenso de miscigenação, absorção de costumes regionais e perda de condições de sobrevivência étnica. Porém, anos depois, em fins da década de 1970, sob a liderança da velha Balbina, e sua filha Iracy, esta embora casada com um civilizado, os remanescentes Timbira convenceram o chefe da Ajudância de Barra do Corda a ajudá-los na luta pela demarcação de uma área que era considerada pelos índios como pertencente ao antigo posto Araribóia. Depois de muita luta para expulsar os posseiros que lá viviam há muitos anos, em 1988 essa terra foi demarcada com o nome de T.I. Geralda-Toco Preto, nome das duas aldeias que estão nas duas margens do rio Grajaú, com cerca de 13.000 hectares.

A transferência do posto Araribóia foi uma decisão tomada pelo novo inspetor do SPI, o Dr. Sebastião Xerez, aconselhado por pessoas da região, entre os quais Olímpio Cruz e Raimundo Vianna. Desta vez, a região escolhida para o novo posto era excelente, compreendendo o perímetro formado pelos riachos Zutiua e Buriticupu, que nascem próximos um do outro, saem em direções opostas, e depois viram em ângulo reto rumo ao norte, descendo em paralelo até desembocarem bastante distantes um do outro no rio Pindaré. A aldeia Tauari Queimado por esse tempo estava desativada e, tomada por lavradores imigrantes, passaria a ser conhecida como povoado Arame, devido à cerca de arame que os missionários ingleses haviam feito ao redor de sua casa de missão antes de 1941, conforme Malcher havia anotado em seu relatório de 1941. Grande parte de seus habitantes Tenetehara havia morrido em conseqüência de uma grave epidemia de varíola em 1947 ou 1948, e os sobreviventes haviam se mudado e se agregado às aldeias mais acima na beira do rio Zutiua.

O posto Araribóia seria instalado na aldeia tenetehara do Funil que se localizava num área bastante salubre e aprazível entre a floresta amazônica e o cerrado maranhense. Em toda essa região, os Tenetehara somavam uns 800 a 900 indivíduos, população que já fora mais alta no passado, caíra nas primeiras décadas do século XX e começava a crescer desde então, inclusive pelo adicionamento de índios que saíram das aldeias do alto Pindaré e da Estrada do Sertão a partir da década de 1950. Viviam em relativa autonomia, longe de cidades (100 a 120 quilômetros de Grajaú), mas com proximidade a povoados de sertanejos antigos à beira da Estrada do Sertão, e de distritos que logo se tornariam cidades, como Amarante e Montes Altos. A alguns quilômetros ao sul estavam os índios Gaviões-Pukobye e mais a sudoeste os Krikati, povos indígenas que também ficaram sob a incumbência do posto Araribóia.

O posto iria florescer na década de 1950, chefiado desde 1954 pelo auxiliar de sertão Benevenuto Riedel, oriundo do Pindaré, filho mestiço do primeiro chefe do posto Gonçalves Dias, nativamente fluente em português e tenetehara, e homem hábil no trato com índios e caboclos regionais . Os Tenetehara viviam em relativa paz, sem ameaças de fora, pois a chefia do posto controlava muito bem a entrada e saída de visitantes. Além da economia interna, os Tenetehara desenvolveram bastante sua economia de troca de produtos da floresta, principalmente amêndoa de cumaru, cera de jutaicica e almécega, e peles de animais silvestres. O delegado de Grajaú era o patrão principal desse comércio, e o chefe de posto não deixava de ganhar um pouco como bom intermediário que era.

A Delegacia de Grajaú assistia também às aldeias que se localizavam a 22 quilômetros a sudeste da cidade, entre o rio Mearim e seu afluente o riacho Enjeitado. Segundo um mapa de 1856 , essa região, a mais setentrional da mata de transição, já era habitada por uma ou duas aldeias tenetehara. Na década de 1950 havia quatro a cinco aldeias nesse território. A principal delas talvez fosse ainda a velha aldeia da Pedra, ou Lagoa da Pedra, que se localizava no centro da área, afastada da beira do Mearim. Fora fundada por fugitivos da Rebelião do Alto Alegre, no início do século. Entre 1930 e 1940 lá morara com sua esposa um missionário protestante, Ernesto Wooten, que tentara converter os Tenetehara, antes da aldeia São Pedro, e depois da Pedra. Com efeito, alguns índios adquiriram um certo conhecimento da Bíblia e uns poucos se identificavam como crentes em algumas ocasiões. Uma meia dúzia deles aprendeu a ler e escrever com o velho Ernesto, e pelo menos de um deles falava-se que era seu filho natural, tal a profusão de cabelos no corpo e os olhos claros. No fim da década de 40, cansados das dificuldades em obter água, muitos membros da aldeia da Pedra saíram e formaram as novas aldeias do Ipu e Bacurizinho, na beira do Mearim. Nessa mesma ocasião alguns deles desceram mais ao sul e situaram a aldeia do Talhado. Já na divisa leste dessa área, na beira do igarapé Enjeitado, estava a mais que centenária aldeia do Bananal.

Uma breve análise da gestão do Dr. Xerez

Como vimos anteriormente, de 1948 a 1962, e até praticamente 1967, a 3ª Inspetoria do Maranhão seria dominada pela figura do advogado positivista Sebastião Xerez. No seu primeiro relatório à diretoria do SPI, o Dr. Xerez traçou em linhas gerais o quadro administrativo da situação que encontrou na sede e nos postos indígenas, dos problemas fundiários a serem resolvidos, dos princípios filosóficos que o guiavam e das metas que pretendia atingir. Começou por estranhar a figura do seu antecessor, Otto Ernesto Mohn, que “tinha elementos de ideologia diversa” entre seus conselheiros. Certamente não seriam positivistas, nem integralistas, o que sobra para simpatizantes do Partido Comunista, algo que não estava fora das possibilidades naqueles anos bem como, aliás, na década de 1950. Xerez era um seguidor das normas positivistas e freqüentemente costumava citar as máximas de Comte, tais como “induzir para deduzir, a fim de construir”, ou “amor por princípio, ordem por meio e progresso por fim”. Em relação aos índios ele compartilhava da visão ortodoxa do SPI, segundo a qual os índios estavam vivendo no estágio cultural animista, mas que, pela doutrinação saudável por meio da moral e do exemplo dos superiores e o contato com a tecnologia eles poderiam evoluir para uma compreensão mais abrangente de sua condição e poderiam até servir de modelo para a sociedade brasileira, especialmente a dos segmentos mais pobres. As eventuais acusações que lhe seriam jogadas contra sua moral, as incompreensões por parte de índios e brasileiros, a agressividade pessoal de alguns e as denúncias de improbidade que Xerez iria sofrer seriam todas apagadas ou sublimadas em nome de suas convicções filosóficas e de sua missão. Quando Darcy Ribeiro esteve no Maranhão, em julho-agosto de 1951, e conversou com Xerez, achou-o um homem de convicções, obstinado até demais, uma das figuras mais afirmativas que encontrara no SPI (Ribeiro 1996: 308-310).

A primeira tarefa espinhosa que Xerez teve que resolver foi o problema dos Tenetehara que viviam nas aldeias que se encontravam fora da área decretada em 1923. Em 1948, essas aldeias eram Farinha, Mundo Novo, Boa Vista, Uchoa e Montevidéu e somavam uns 300 habitantes. O problema, que poderia ter sido evitado, se o SPI tivesse antes demarcado duas áreas de terras de 52.272 hectares e 41.382, como planejara em 1941-42, se agravara por causa da instalação de uma projeto de colonização criado em 1944 por Getúlio Vargas que abrangia cerca de 300.000 hectares, inclusive as terras daquelas aldeias. Havia pressão federal, estadual e municipal para o SPI convencer os índios a abandonarem aquelas aldeias e se estabelecerem nas terras já delimitadas e reconhecidas pelos barracordenses como terras indígenas. O diretor do projeto de colonização, um político local, Dr. Eliezer Rodrigues Moreira, inclusive já tentara ele próprio persuadir os índios, oferecendo-lhes brindes e vantagens, e tentara colocar pessoas de sua confiança na Ajudância de Barra do Corda. Em vão. Entretanto, Xerez conseguiu convencer os índios de que eles teriam tudo ao chegar aos locais que escolhessem ficar, inclusive roças já feitas e casas já construídas. Duas aldeias novas foram planejadas, uma na beira do rio Mearim, perto da velha aldeia Colônia, a outra no rio, Corda, não muito longe da aldeia Sardinha. Um contrato foi feito com empreiteiros locais para fazer casas e as roças. Quando chegou a hora da mudança, na estação de estio de 1949, só havia 15 casas construídas (das 35 planejadas) na beira do rio Corda. O grupo de índios que chegou ao rio Mearim logo iria passar privação de comida e sofrer com uma epidemia de sarampo e coqueluche, que tirou a vida de oito deles e os fez dispersar pelas aldeias vizinhas. No rio Corda, a nova aldeia denominada Vila Indígena Uchoa (em homenagem à maior das aldeias abandonadas) manteve-os por alguns anos até que em 1954 ou 1955 a deixariam para se mudar para o local da antiga aldeia Canabrava, dos tempos do Alto Alegre. Essa transferência não aconteceu sem trauma e desgosto, como poderemos sentir nos relatos de dois velhos Tenetehara que dela participaram, transcritos no Capítulo XV. De todo modo, Xerez provara às autoridades locais e à direção do SPI que era um homem capaz, de princípios mas também de realismo. Sua gestão daí por diante raramente seria desafiada pelas autoridades locais. Na direção nacional do SPI Xerez era reconhecido como um dos melhores inspetores do órgão. Seus encaminhamentos sobre a questão da demarcação das terras indígenas serão apresentados no Capítulo X.

Xerez administrou a região de Barra do Corda-Grajaú através da Ajudância e da Delegacia dessas duas cidades, comandadas respectivamente por Olímpio Cruz e Raimundo Vianna. Xerez apoiou com recursos as atividades de fomento econômico realizadas por esses dois agentes, sempre de uma forma paternal mas com um controle rígido sobre as verbas . Parte desses dados será analisada no Capítulo XII, sobre a economia de troca tenetehara.

Xerez adquiriu uma casa para servir de sede da 3ª Inspetoria em São Luís e outra em Barra do Corda. Em 1956 a biblioteca da Inspetoria continha 729 volumes de obras de história, romance e outros assuntos. Esses livros e seus arquivos foram guardados zelosamente, até serem vendidos como papel velho por um delegado da FUNAI em 1975.

Os Tenetehara de Grajaú-Barra do Corda nas décadas de 1950 e 1960

Ao contrário do que sucedia na região do Pindaré, o centro-sul maranhense continuou a sua vida de região de sertanejos e fazendeiros de médio porte, com agregados que tomavam conta do gado e dos algodoais, com suas roças de mandioca, arroz e abóboras para subsistência. Da floresta ainda se extraía resinas, amêndoas de cumaru e peles silvestres, cujo comércio era realizado por alguns poucos patrões, inclusive o agente de Grajaú. Em fins da década de 1940, terminou para sempre o desgraçado serviço das canoas que desciam o rio Grajaú carregando sacas de algodão, couro de gado e produtos silvestres, os quais passaram a ser exportados via terrestre, por rodovia carroçável, de precárias condições até a década de 1980. Ao mesmo tempo no início da década de 1950 surgia o serviço de aviação de pequeno porte, ligando São Luís ás cidades interioranas, o qual iria facilitar sobremaneira a vida do inspetor Xerez e o transporte de bens leves e correspondência.

Desde a renovação do SPI, a partir de 1940, foi criado um programa, conhecido como “aprendizes índios” ou “apríndios” de contratação de índios para ajudar nas tarefas obreiras dos postos indígenas. Em geral eram contratados como trabalhadores braçais para fazer roças, mas também podiam ser vaqueiros, barqueiros, auxiliares de ensino e de enfermagem. O primeiro Tenetehara a ser contratado foi o professor Felipe Boni, ainda na década de 1920. Em 1935, o chefe da Vigilância, Raimundo Miranda, contratou o Tenetehara Silvano Pereira da Silva, da aldeia Colônia, que foi efetivado em 1940. Dois outros Tenetehara foram contratados ainda na década de 1940, tendo sido despedidos por Xerez. Um deles foi José Maria Cabral, da aldeia São Pedro, que foi substituído por José Amorim, contratado em 1948. Agenor Boni de Souza. Alcebíades Carvalho. Inácio Pereira da Silva, Aristides Chagas e José Galdino foram contratados em 1949, Celestino Lopes em 1953, Antonio Goiabeira em 1954, Raimundo Silvino em 1956 e José Pompeu em 1958, todos das aldeias de Barra do Corda. Na década de 1960 viriam as contratações de Domingos Soares, da aldeia Presídio, que trabalhava na aldeia Urucu, e Suely Boni da Silva, filha do professor Felipe Boni, casada com um karaiw que também iria trabalhar no posto Araribóia. Por alguns meses em 1964 foram contratados os Tenetehara Pedro Marizê e Alderico Lopes da aldeia Bacurizinho, mas não foram efetivados na ocasião. Todos esses índios se tornariam pessoas de influência em suas aldeias e nos postos que serviam, e seus descendentes se tornariam igualmente importantes na atualidade .

Assim, a vida dos Tenetehara da região Grajaú-Barra do Corda transcorria de uma forma aceitável, como num lento processo evolutivo, diria o inspetor Xerez. Com o uso de vacinações que os enfermeiros da Ajudância começaram a realizar naqueles anos, os Tenetehara passaram a sofrer menos epidemias e sua população começou a crescer. Em 1949, Xerez contara 868 índios Tenetehara nas aldeias que pertenciam ao posto Tenente Manuel Rabelo. Em 1953, incluindo a aldeia de Bananal (que mais freqüentemente é computada com as aldeias do posto Araribóia), essa população já era de 1.210, nas aldeias Colônia, Coquinho, Coroatá, Jurema, São Pedro, Vila Uchoa, Sardinha, Chupé e Bananal, demonstrando já um pequeno crescimento demográfico.

Em 1955, talvez o ano auge da administração do Dr. Xerez, as crianças Tenetehara eram assistidas em escolas indígenas nas seguintes aldeias: posto Tenente Manuel Rabelo, com 35 a 40 alunos; aldeia Sardinha, com 40 alunos; aldeia Vila Uchoa, com 35 alunos; Escola Pedro Dantas, no posto Araribóia, com 55 alunos; aldeia Borges, com 24 alunos; e aldeia Ipu, com 19 alunos. Entretanto, a velha escola do posto Gonçalves Dias estava desativada.

Os Tenetehara sob a jurisdição do posto Araribóia, incluindo os que moravam no alto Mearim, somavam em torno de 1.600, sendo 350 nas aldeias Pedra, Mangueira, Ipu, Bacurizinho e Canto do Rio, situadas nas terras entre o rio Mearim e seu afluente o riacho Enjeitado; e umas 1.200 nas aldeias Toari, Curupaty, São José, Vamos Ver, Cururu, Guaruhu, Guarimãzinho, Lagoa Comprida, Presídio, Borges e Funil, localizadas na zona do posto Araribóia, além das aldeias Catingueiro, Urucu e Juruá, próximas do rio Grajaú. Essa população, que incluindo os 560 Tenetehara do Pindaré - metade do que eram em 1940 - somava umas 3.400 pessoas, foi a menor população dos Tenetehara em toda sua história, conforme veremos em detalhe no Capítulo XIV.

Em agosto de 1963, num balanço feito pelo inspetor Olímpio Cruz, a população tenetehara chegava a 3.613, número que parecia não ter aumentado substancialmente por causa da queda no Pindaré para 252 pessoas. Pois, no posto Tenente Manuel Rabelo já eram 1.547 Tenetehara distribuídos nas aldeias São Pedro (203), Sardinha (212), Coroatá (81), Jurema (52), Descanso (38), Arroz (75), Colônia (63), Siquizer (75), Canabrava ou Vila Uchoa (305), Lagoa Comprida (190), Porco (40), Coquinho (73) e Bananal (140) . As aldeias do posto Araribóia somavam 1.814 Tenetehara distribuídos nas aldeias Funil (132), Borges (85), Buritirana (30), Guarimãzinho (56), Bacurizinho (45), Guaruhu (80), Cabeceira (95), Lagoa Comprida (166), Cururu (230), Vamos Ver (110), Presídio (140) e Curupaty ou Mandacaru (26); além das aldeias perto do rio Grajaú, Juruá (57), Urucu (59), Jaburu (12) e Catingueiro (41); e aquelas localizadas no rio Mearim, perto da cidade de Grajaú, Ipu (135), Bacurizinho (160), Cocal (45) e Pedra (110) . Portanto, essa população estava em franco crescimento desde a década de 1950, e na década de 1970 iria se multiplicar a índices superiores a 4% ao ano.

Entrementes, a partir de 1958, 1959, começaram a chegar lavradores pobres à procura de terras na região de Grajaú-Barra do Corda, muitos dos quais foram sendo acomodados pelo projeto de colonização já existente desde 1944, que tinha terras reservadas para tanto. Entretanto, esse projeto, apesar de ter feito a carreira política de alguns barracordenses, tais como o próprio primeiro diretor, Eliezer Moreira, e, na década de 1970, Fernando Falcão, nunca produziu resultados sólidos e permanentes. As terras eram boas, mas os pobres lavradores não ficavam muito tempo. Durante alguns anos, a elite da cidade andou comprando lotes dos colonos que desistiam, mas também as fazendolas que construíam não davam ganho à altura. Na verdade, a forma cultural que lastreava esse projeto, bem como daquele criado a oeste do baixo Pindaré, parecia inadequada às expectativas dos colonos, que se sentiam tolhidos por regras de comportamento e crédito. Assim, muitos imigrantes preferiam se localizar fora do projeto, em sítios onde podiam fazer roças de arroz e ser aviados por patrões locais. Assim foram engrossando os pequenos núcleos de povoamento, como São Pedro dos Cacetes, que existia como local onde moravam algumas famílias de lavradores desde 1928, e outros que foram se formando naqueles anos, como Jenipapo dos Vieiras, Jacaré e Pau Ferrado. Esses e outros centros agrícolas, localizados alguns dentro da área reservada aos Tenetehara, outros nas vizinhanças, foram virando povoados e atraindo novos lavradores.

Naqueles anos, a Ajudância de Barra do Corda, talvez sentindo a pressão dos tempos e sem poderes para exercer uma ação contrária, tentou contemporizar com esses lavradores, permitindo inclusive o arrendamento de lotes para a abertura de roças e a venda de madeira. Esses arrendamentos aconteceram no limite nordeste da área indígena, perto das aldeias Canabrava e Cocalinho, onde ia se povoando Jenipapo dos Vieiras (feito município na década de 1990), e das aldeias Lagoa Comprida, Leite e Urucu, cujas terras não haviam sido oficialmente delimitadas nem demarcadas até então. Diversos documentos da época, entre 1964 e 1968, indicam que alguns chefes da Ajudância de Barra do Corda, como Olímpio Cruz, Júlio Alves Tavares e Hugo Ferreira Lima , bem como o novo chefe da Ajudância, já sob a FUNAI, Domingos Justino Novaes (que acumulava o cargo como chefe do posto Gonçalves Dias), davam aval a tais empreitadas e recolhiam renda dos seus resultados. Eles eram coadjuvados por alguns Tenetehara, entre eles Domingos Soares, funcionário do SPI que vivia na aldeia Urucu, e Agenor Boni, filho do falecido professor Felipe Boni, que exercia papel de chefia nas aldeias da região. Tais feitos jamais haviam sido permitidos por Sebastião Xerez, mas também a pressão nos anos idos havia sido bem menor.

A antiga missão do Alto Alegre, que havia sido abandonada de fato pelos capuchinhos desde a Rebelião de 1901, mas não de direito, pois não haviam deixado de registrá-la em cartório de Barra do Corda em 1939, começou a ser reativada com a chegada de uma nova geração de capuchinhos. Dos seus escombros, a igreja foi reconstruída em 1960. A ordem resolveu atrair imigrantes para povoar e garantir as terras, cobrando-lhes uma renda pelo seu uso. Como o Alto Alegre estava perto do povoado São Pedro dos Cacetes, os dois passaram a ser pólos de atração de novos imigrantes. Pela metade da década de 1960 o Alto Alegre tinha uns 80 moradores, enquanto São Pedro dos Cacetes já tinha mais de 200 casas. Os chefes da Ajudância não sabiam o que fazer, desistindo de qualquer ação de retirada de moradores, mesmo porque havia dúvidas da legitimidade e legalidade das partes, inclusive do SPI. Os Tenetehara reclamavam, não aceitando abrir mão da parte que lhes fora reservada desde o decreto estadual de 1923, cujos momentos de demarcação acompanharam passo-a-passo. Esse problema só seria resolvido trinta anos depois, como veremos no Capítulo X.

Nas aldeias do município de Grajaú, entretanto, as pressões exógenas eram menores. A Delegacia de Grajaú estava quase desativada desde a saída de Raimundo Vianna em 1960. O auxiliar de sertão, João Batista Chuvas, substituiu Vianna, depois, em 1964, Antonio Ferreira do Nascimento passou a ser seu chefe até fins de 1967. Domingos Soares, que antes fora responsável pelas aldeias do rio Grajaú, ficou como encarregado por algum tempo depois. Nesse período, a partir de 1964, os Tenetehara Pedro Marizê, Alderico Lopes e Roberto Lopes foram contratados como prestadores de serviços com vistas a serem efetivados para supervisionar as aldeias do Mearim, a partir de Bacurizinho e Ipu, área relativamente tranqüila, pois só nas proximidades da aldeia Bananal começava a surgir confusão com lavradores imigrantes. Já as terras entre o Zutiua e o Buriticupu, sob a supervisão de perto do posto Araribóia, estavam ainda longe do ruge-ruge que iriam sofrer a partir da década de 1970. Porém as últimas aldeias à margem esquerda do rio Grajaú - Catingueiro, Jaburu e Curupaty - foram abandonadas pelos Tenetehara, restando somente aquelas da margem direita, Urucu e Juruá, que naqueles anos tinham se vinculado à Ajudância de Barra do Corda e cujas terras estavam sendo invadidas.

Assim, também na região Grajaú-Barra do Corda, a década de 1960 iria cobrar um preço alto aos Tenetehara e sobre a 3ª Inspetoria Regional do SPI, incluindo a Ajudância de Barra do Corda e a Delegacia de Grajaú. Porém, em comparação com o que acontecia ao mesmo tempo no Pindaré, o desastre era bem menor, especialmente porque sua população crescia e se consolidava na luta para reter as terras que consideravam suas.

O SPI e a assistência à saúde dos Tenetehara

Desde o início, o SPI tinha consciência de que o pior flagelo dos índios, especialmente dos povos recém-contatados, eram as doenças trazidas pela civilização. A varíola, o tifo e os sarampos eram doenças em tese já controláveis pela vacinação, mas a malária (impaludismo ou sezão), a coqueluche, as gripes e pneumonias vinham em surtos freqüentes e incontroláveis. A tuberculose e as doenças venéreas vinham e ficavam, tornando-se crônicas, endêmicas e de difícil cura. E a mortalidade infantil chegava a porcentagens altíssimas, provavelmente a até 400 por 1.000 . Até a década de 1950, pode-se dizer que o SPI teve poucos recursos e quase nenhuma iniciativa para cortar o mal pela raiz, pela vacinação em massa, ou para aliviar o sofrimento e o definhamento das populações indígenas pelo Brasil a fora. Surtos de varíola, sarampo, malária e doenças respiratórias e crônicas arrasaram aldeias inteiras, em alguns casos até 80% de uma população atingida, dando a impressão de que não havia solução para a extinção dos povos indígenas do país.

Os Tenetehara não constituíram exceção. Sua população caía visivelmente em quase todas as regiões de povoamento, e mesmo onde ela parecia estável ou em algum nível de crescimento, como na área do Bacurizinho, por exemplo, a morte rondava na forma de epidemias e alta mortalidade infantil. Ainda assim, à moda sertaneja, com pouquíssimos recursos farmacêuticos à mão, o SPI fez um esforço para tentar prover alguma assistência médica aos Tenetehara ao longo dos seus 57 anos de existência. Ao menos era de praxe que o chefe de posto, ou algum civilizado trabalhando no posto, tivesse algum conhecimento de remédios farmacêuticos e soubesse atender os índios nas doenças para as quais eles não tinham nenhuma forma de cura. Segundo relatos que ouvi de velhos sertanistas, como Benevenuto Riedel, Florindo Diniz e João Cantu, que conheceram outros sertanistas da década de 30 e 40, de fato, eles, que sabiam ler uma bula, freqüentemente prestavam assistência através da prescrição de remédios que chegavam aos postos indígenas. Quando eventualmente aparecia um médico ou enfermeiro prático, todos se submetiam de bom grado às suas prescrições e distribuições de remédio. Não é de surpreender a importância do prático de enfermagem haja visto que muitos deles terminaram se tornando chefes de posto ao longo dos anos do SPI e depois com a FUNAI.

A partir da década de 1940, o SPI começou a prover alguma assistência de saúde mais sistemática aos Tenetehara tanto da região do Grajaú-Barra do Corda, como do Pindaré. Até então, a maioria das aldeias tenetehara haviam tido pouquíssima assistência de saúde, além da moda sertaneja. Os Tenetehara da aldeia da Pedra, por exemplo, eram dos poucos que haviam recebido alguma assistência através do missionário inglês, que lá havia morado entre 1930 e 1940, bem como de um médico ou enfermeiro ocasional na cidade de Grajaú. Em 1975, alguns velhos Tenetehara da aldeia Bacurizinho me informaram sobre duas grandes epidemias anteriores a 1940: uma que ocorreu no início da década de 1910, que é descrita como sarampo, e outra no início da década de 1930, descrita como varíola. Esta última epidemia é confirmada pelas marcas deixadas nas faces e ombros de alguns dos sobreviventes que encontrei. Em nenhum caso os índios chegaram a ser socorridos pelo SPI. A opinião dos sobreviventes é de que ambas as epidemias tiveram efeitos devastadores, matando tanto crianças como adultos.

Em 1929, ao visitar a aldeia do Bananal, Fróes de Abreu (1931:111) viu vários Tenetehara com tuberculose e alguns supostamente com doenças venéreas. É de se aquilatar que ao longo do período do SPI essas doenças existissem de forma endêmica em um grande número de aldeias tenetehara (bem como timbira) da região do Grajaú. Wagley e Galvão, entretanto, não relatam essas condições nas aldeias da região do Pindaré. No fim da década de 1940 e início dos anos 50, o sarampo grassou com virulência incomum nos vales dos rios Grajaú e Pindaré. A grande aldeia Tauari Queimado, que tinha talvez até 400 habitantes, localizada na beira do rio Zutiua, ao lado da Estrada do Sertão, ficou despovoada após um desses surtos, em 1948. Assim, pode-se concluir que uma das causas fundamentais do esvaziamento dos Tenetehara no vale do Pindaré, exceto no alto Zutiua e Buriticupu, deve ser creditado a ocorrência de epidemias de coqueluche e sarampo. Assim raciocinam também os relatos de vários Tenetehara velhos que viveram nesse tempo.

Mesmo nas décadas de 1950 e 1960, a assistência permanente de saúde dada pelo SPI limitava-se à distribuição de alguns poucos remédios farmacêuticos e alguma instrução sobre como tomá-los. O acompanhamento era esporádico e a cura se dava mais pela capacidade de resistência do indivíduo do que pelo tratamento em si. A malária, conhecida regionalmente como impaludismo, maleita ou sezão, que grassava no centro-sul maranhense naquela época, era das doenças mais visadas, por ser exatamente tão óbvia a sua manifestação. O atendimento dado pelo SPI consistia basicamente na doação aos chefes de família tenetehara de 3 a 6 comprimidos à base de quina por doente. O comprimido “Aralem” era o mais comumente receitado e sua atuação durou por três décadas mais. Naqueles anos havia apenas um enfermeiro prático do SPI para atender toda a região do Grajaú, e dois ou três no município de Barra do Corda, e prescrevia-se um comprimido por dia para um paciente adulto e meio para crianças. Esses comprimidos eram fornecidos, por convênio com o SPI, pelo Serviço Nacional do Controle da Malária (SNCM), que mais tarde virou a SUCAM e expandiu sua atuação para todos os recantos do Maranhão, usando como método profilático principal a borrifação das casas com DDT para matar os mosquitos anofelinos transmissores do plasmódio da malária.

Na década de 1950 o SPI incrementou seu serviço de saúde por todo o país, especialmente a partir do estabelecimento do Parque Nacional do Xingu, que chamou a atenção do público para os problemas de saúde dos índios. Foi criado um programa de imunização contra a varíola e tratamento da tuberculose. Em 1953 quase todos os índios do posto Tenente Manuel Rabelo estavam vacinados contra varíola. Em 1958, 863 Tenetehara do posto Araribóia haviam sido vacinados. Em setembro de 1966 nova vacinação nas aldeias de Barra do Corda foi feita pelo enfermeiro Floro Brandes. Quando a FUNAI formou sua equipe médica, por volta de 1970, que tomou pé da situação médica dos postos indígenas que serviam aos Tenetehara, sua atitude era de que a varíola estava erradicada, portanto não mais requeria a atenção das autoridades sanitárias. Porém um relatório redigido pelo enfermeiro do posto indígena Bacurizinho, em 1973, indicava a suspeita da presença de cinco casos de varíola, os quais, no entanto, nunca foram confirmados Quanto à tuberculose, a vacina BCG e os tratamentos à base de sulfa e antibióticos foram transformando a doença em mais curável, ou ao menos muitos contaminados iriam sobreviver por mais tempo do que o esperado, já que, em muitos casos, os programas de tratamento não eram seguidos à risca, como devido, para completa cura. Esses programas foram continuados pela FUNAI de forma mais consistente. Entre junho e agosto de 1968, 350 índios das aldeias Canabrava, Lagoa Compria e Urucu haviam sido vacinados contra febre tífica.

Os Tenetehara do Bacurizinho tiveram bastante sorte por viverem próximo à cidade de Grajaú, onde, desde fins da década de 1950, havia sido construído e aparelhado um moderno hospital de clínicas. A iniciativa desse empreendimento se devera a um membro da família Beretta, dona da famosa marca de armas italiana, que era médico e havia se tornado frade capuchinho depois da Segunda Grande Guerra. Quis o destino que Frei Alberto Beretta viesse missionizar no interior do Maranhão, onde os capuchinhos da Lombardia haviam persistido, e onde tomou gosto em se relacionar com os Tenetehara. O hospital desde então tem funcionado uma entidade sem fins lucrativos, e ultimamente é conveniado com o sistema único de saúde, atendendo às necessidades de saúde de quaisquer pessoas (índios ou brasileiros, pobres ou ricos) que o procurem. Frei Alberto foi seu diretor e médico principal até sua morte, em 1984. Por mais de duas décadas ele prestou assistência médica gratuita em todas as ocasiões que os Tenetehara precisaram, inclusive mandando a ambulância do hospital ir pegar os doentes na própria aldeia. Em alguns anos de bonança financeira, a FUNAI chegou a fazer convênios com esse hospital, abrindo mais espaço para os Tenetehara e os Timbira da região Grajáu-Barra do Corda.

SPI: uma avaliação parcial

O Serviço de Proteção aos Índios foi extinto em 5 de dezembro de 1967 e substituído pela Fundação Nacional do índio através do decreto-lei 5.321. Nos prévios três anos havia estourado uma série de escândalos em que supostamente alguns dos seus servidores foram considerados até como assassinos, ou cúmplices de assassinatos, de índios; outros foram considerados corruptos, venais e despreparados. O escândalo maior foi a descoberta pela imprensa de um massacre de uma aldeia inteira de índios Cintas-Largas, em Mato Grosso, na altura do paralelo 11, entre cujos assassinos, a mando de um grande especulador de terras, estava um ex-funcionário do SPI. Um procurador da república, Jardes Figueiredo, abriu um inquérito, que teve larga repercussão na imprensa, no qual, ao final, ninguém parecia ter ficado sem nódoas. Até o trabalho de pessoas como Noel Nutels, o sanitarista que criara o serviço de combate à tuberculose, e último diretor do SPI no governo João Goulart, os sertanistas Francisco Meirelles, pacificador dos Xavante, e os irmãos Villas Boas, diretores do Parque Nacional do Xingu, de alguma forma foi posto em questão. Com certeza uma ala do regime militar da época queria dar um fim ao órgão indigenista, na expectativa de dar fim também aos índios . Integrar os índios à sociedade nacional, através do trabalho, da educação e da aculturação, era um mote que estava presente em parte da elite política brasileira, e uma linha de militares queria ver isto cumprido. A imagem que se queria projetar de um Brasil grande e em desenvolvimento, com espírito moderno, também não parecia se coadunar com o jeitão do velho SPI. Foi nesse espírito, e sob um fundo de combate à imoralidade e a incúria, que o SPI foi extinto para surgir a FUNAI.

Encarando objetivamente a história do SPI, não podemos fugir à obrigação de pesar os prós e os contras dos seus 57 anos de atividades. Desde a sua extinção, muitos antropólogos já fizeram tais avaliações, quase todas reprobatórias. Afinal, nesse período, muitas etnias foram extintas e quase todos os povos sobreviventes perderam grandes contingentes populacionais. Poucos tiveram suas terras demarcadas e garantidas, e pouquíssimos adquiriram os meios econômicos e educacionais para fortalecer suas culturas e suas conceituações perante a sociedade brasileira. Do lado positivo, pode-se dizer que foi o SPI que estabeleceu uma visão humanística e uma atitude prática de dedicação e auto-sacrifício poucas vezes vistas em associações de caráter estatal e laico. Foi o SPI que projetou o índio à categoria de brasileiro ante quod altre e forneceu os argumentos para a sua inserção especial nas constituições brasileiras desde 1934. Por fim, pode-se dizer que foi na última década de sua existência que a maioria das etnias indígenas brasileiras, tendo descido aos seus nadires populacionais, começaram, imperceptivelmente, a crescer, revertendo a tendência de 450 anos de declínio demográfico, que parecia a todos inexorável .

Em relação aos Tenetehara, espero que a análise descritiva ora apresentada possa nos ajudar a aquilatar o grau de relevância da atuação do SPI. No baixo e médio rio Grajaú, o resultado é absolutamente negativo, pois os índios ficaram à mercê dos fazendeiros e coronéis locais e, apesar de sua resistência até a década de 1960, perderam suas terras. No alto e médio Pindaré e em todo o Gurupi, sua ação foi deficiente ao ponto de abandono, pois os índios sofreram baixas de quase 90% de suas populações e seus territórios teriam sido perdidos não fosse por eventos inesperadas, como a chegada de imigrantes Tenetehara vindos do baixo Grajaú, e a atuação da FUNAI. Nas demais áreas, porém, por circunstâncias favoráveis do relacionamento interétnico, o SPI foi capaz de solidarizar-se, talvez apesar de suas intenções assimiladoras, com o propósito dos Tenetehara de manter sua identidade étnica, e ensejar condições que ajudaram à sobrevivência desse povo, inclusive com a pré-garantia da posse das suas terras. Porém, no balanço final, não restam dúvidas de que o mérito dessa sobrevivência deve ficar com os próprios Tenetehara, que não concebiam outra opção honrosa senão lutar para serem eles mesmos. Nesse sentido, a ação positiva do SPI foi obra das circunstâncias históricas por que passou o Brasil, em que o Estado e parte da sociedade foi ganhando uma compreensão mais progressista da realidade indígena, compreensão esta que em alguns casos foi realizada positivamente. No mais, o que vinha acontecendo era o surgimento dos índios como fautores de um novo destino que eles começavam a traçar para si próprios.
 
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